Mercado de palestras de ministros tem empresas especializadas em intermediar pagamento de cachês

Membros da cúpula do Judiciário criam empresas de eventos e palestras e, em casos levantados pelo ‘Estadão’ recebem pagamentos por meio de pessoas jurídicas – o que reduz a cobrança de impostos sobre os cachês

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Atualização:

BRASÍLIA – Pouco mais de 500 metros separam, em Brasília, as sedes de duas das principais firmas dedicadas a organizar eventos nos quais ministros de tribunais superiores proferem palestras, a pedido de empresas e entidades privadas. Tanto o Instituto Justiça e Cidadania (IJC) quanto o Instituto de Estudos Jurídicos Aplicados (IEJA) estão sediados em casas na quadra 26 do Lago Sul, bairro mais nobre da capital federal.

Juntas, IJC, IEJA e a Academia Brasileira de Formação e Pesquisa (ABFP), também sediada em Brasília, aparecem como organizadoras em dezenas de palestras proferidas por ministros e juízes. Em alguns deles, organizados pela ABFP, a reportagem do Estadão conseguiu identificar os valores dos cachês recebidos pelos magistrados, que somam mais de R$ 175 mil. Procuradas, as empresas não responderam.

Fachada do Superior Tribunal de Justiça (STJ): ministros da Corte têm empresas de palestras e cursos Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Ministros são donos de empresas de palestras

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A prática de criar empresas de eventos e palestras, muitas vezes em sociedade com familiares, tem se espalhado na cúpula do Judiciário. Em alguns dos casos levantados pelo Estadão, os magistrados receberam os pagamentos por meio das pessoas jurídicas – o que reduz a cobrança de impostos sobre os cachês.

Do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro André Mendonça é dono de uma empresa de eventos por meio da qual já recebeu um cachê de R$ 50 mil, como revelado pelo Estadão. O presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, é dono de uma empresa de gerenciamento de direitos autorais de livros em parceria com os dois filhos. Os familiares de Alexandre de Moraes também possuem uma empresa do tipo, chamada Lex Instituto de Estudos Jurídicos Ltda – o ministro fazia parte da estrutura da empresa, mas se desligou ao assumir cargo no governo de São Paulo.

O ministro Kassio Nunes Marques possui uma sociedade familiar, mas sem relação com cursos e palestras. Já Gilmar Mendes é sócio de uma das principais faculdades privadas de direito do País, o IDP. Procurado, Barroso disse que sua empresa é usada para “gerir direitos autorais de obras literárias”. Mendonça e Moraes não se manifestaram.

O ministro André Mendonça é dono de uma empresa de eventos por meio da qual já recebeu um cachê de R$ 50 mil, Foto: Joédson Alves/EFE

A Constituição Federal impede os juízes de exercerem qualquer outra atividade além de julgar e dar aulas. Já a Lei Orgânica da Magistratura (Loman), herdada da ditadura militar (1964-1985), permite a juízes, desembargadores e ministros realizar atividades empresariais, desde que na condição de sócios cotistas.

Em 2021, sob a presidência do ministro Luiz Fux, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) promoveu mudanças normativas que equipararam a realização de palestras à atividade de professor, legalizando os pagamentos a magistrados. O mesmo Fux acabou com a exigência de transparência para as palestras.

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Além dos ministros do STF, outros magistrados também têm empresas de palestras e cursos. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), Luís Felipe Salomão mantém desde 2018 a firma “Direito e Justiça Comércio de Livros e Eventos Jurídicos LTDA” com o filho, o advogado Rodrigo Cunha Mello Salomão. Em junho de 2021, ele recebeu R$ 9,3 mil para discursar num evento da Câmara Brasileira da Indústria da Construção, a CBIC, por meio da empresa. Em junho deste ano, o cachê do ministro subiu para R$ 42,8 mil, num evento do setor de cartórios – a contratação foi intermediada pela ABFP.

Também no STJ, o ministro Marco Buzzi é sócio do Instituto de Mediação, Gestão e Administração, junto com familiares. Por meio dela, recebeu, por exemplo, R$ 10 mil por uma palestra para servidores da Assembleia Legislativa de Mato Grosso, em outubro passado. Reynaldo Fonseca, também do STJ, é dono da “SF Consultoria Acadêmica, Cursos e Eventos LTDA”, junto com familiares. Recebeu ao menos R$ 20 mil através da firma em maio deste ano, em um evento promovido pela Escola Judicial do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul.

No Tribunal Superior do Trabalho (TST), o ministro Douglas Alencar Rodrigues tem uma firma batizada com o nome latino-anglófono Scientia Academy. Em junho passado, recebeu R$ 20 mil para palestrar num evento da CBIC. Já o desembargador do TRF-1 João Carlos Mayer Soares é dono, desde julho de 2022, da empresa “Mayer Academy LTDA”, em sociedade com um empresário, mas não foram identificados pagamentos ao magistrado por meio dela.

Outros dois ministros do STJ também usaram suas empresas para receber por palestras. Antonio Saldanha Palheiro e Paulo Dias de Moura Ribeiro falaram a servidores da Assembleia Legislativa de Mato Grosso, em maio e em agosto deste ano, por R$ 15 mil. Outra coincidência é que as empresas de ambos usam as iniciais dos donos: Instituto MR de Estudos Jurídicos, no caso de Moura Ribeiro, e ASP Treinamento e Desenvolvimento, de Antonio Saldanha Palheiro. Na Receita Federal, Moura Ribeiro figura como sócio-administrador de sua firma, o que é vedado pela Lei Orgânica da Magistratura.

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Como mostrou o Estadão, os cachês de ministros, desembargadores e juízes chegam a R$ 50 mil por intervenções que geralmente mal passam de uma hora. A reportagem levantou os valores recebidos em 17 eventos do tipo, de junho de 2021 a agosto deste ano. Os pagamentos aos magistrados somam R$ 370 mil. O valor mais elevado – R$ 50 mil – foi pago ao ministro André Mendonça pela palestra em Mato Grosso do Sul. A segunda maior cifra, R$ 42,8 mil, foi recebida pelo ministro Luís Felipe Salomão, do STJ. Um único magistrado, o desembargador João Carlos Mayer Soares, recebeu ao menos R$ 72,5 mil por palestras, entre 2022 e este ano.

“A leitura que eles (juízes) fazem da Lei Orgânica da Magistratura é diferente da minha. Se existe uma proibição (de ser administrador de empresas), qual o sentido desta proibição? É que os juízes se concentrem nas duas atividades, e não se abra caminho para outras. E aí o que estamos vendo? Outra atividade. Dar palestras é o mesmo que dar aulas? Eles podem entender dessa maneira. Eu acho que o objetivo de quem abre uma empresa para dar palestras é o de ter um negócio em paralelo”, avalia o jurista e desembargador aposentado Walter Maierovitch.

O procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, Roberto Livianu, tem opinião parecida. Segundo ele, o ideal seria que as palestras fossem regulamentadas por um código de ética. “E tudo deveria ser informado pelos membros do Ministério Público e da magistratura, para que tenhamos transparência sobre estas atividades. Inclusive para que elas não conflitem com o exercício das funções. Membros do MP e da magistratura têm que se dedicar às suas atividades. Não tem sentido que outras atividades atrapalhem a atividade funcional principal”, diz ele, que é presidente do Instituto Não Aceito Corrupção (INAC).

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Empresas exercem influência no Judiciário e organizam eventos com magistrados

Uma das empresas mais influentes no ramo das palestras de juízes em Brasília é o IJC. O instituto é o braço acadêmico e de eventos da revista Justiça & Cidadania. A instituição voltada ao nicho jurídico é administrada pelo empresário Tiago Soares Santos Sales, que é filho do jurista Orpheu dos Santos Salles, e conta com o ministro Luis Felipe Salomão como presidente do Conselho Editorial.

A reportagem do Estadão identificou 21 eventos realizados pelo IJC com a presença de ministros do STF, do STJ e do TST. Para fazer esses eventos, o instituto conta com parceiros públicos e privados que repassam valores vultosos. A reportagem questionou a empresa se parte dos recursos captados na organização de eventos é repassado aos magistrados, mas não teve resposta.

Em 2021, sob a presidência do ministro Luiz Fux, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) legalizou os pagamentos a magistrados; o mesmo Fux acabou com a exigência de transparência para as palestras Foto: Gustavo Moreno/SCO/STF

Em setembro de 2022, o IJC realizou o seminário “Conversa com o Judiciário – Segurança Jurídica e Risco Brasil”, em parceria com a Federação das Indústrias do Ceará (FIEC) e com patrocínio da Confederação Nacional da Indústria (CNI). O evento teve o ministro Luiz Fux, do STF, como principal atração e custou R$ 145 mil à CNI, segundo informou a entidade. A reportagem questionou a Confederação e o IJC se o ministro recebeu cachês, mas ambos negaram.

Em outubro passado, Fux foi a Londres para o evento “New Trends in the Common Law”, organizado por docentes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A instituição aparece como responsável pela “realização” do evento, junto com o IJC. A reportagem pediu à UERJ informações sobre eventuais cachês de Fux por meio da Lei de Acesso à Informação, mas a instituição alegou que não se envolveu com os custos ou a parte logística do evento: tudo ficou sob responsabilidade do IJC.

Outra instituição que dá as cartas nesse mercado é a ABFP. O dono é o empresário Zilmar Santana Assis, que tem negócios nos ramos bancário, imobiliário, hospitalar, varejista, educacional e portuário. A empresa recebeu R$ 211 mil da administração dos portos de Paranaguá e Antonina, no Paraná, para realizar o “Seminário In-Company sobre a Nova Lei de Licitações” em abril do ano passado.

O site da Academia informa que o ministro Douglas Alencar Rodrigues, do Tribunal Superior do Trabalho, atua como “professor”. O magistrado esteve em julho deste ano na sede da Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA) para convidar o presidente da instituição, João Martins, para participar do 3º Congresso Nacional da Magistratura do Trabalho, organizado pela ABFP. O ingresso para participar do evento custa R$ 4 mil.

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De acordo com o site da CNA, Alencar destacou na conversa “a importância da presença das confederações patronais para aprofundar o diálogo entre os empresários e a classe trabalhadora”.

A ABFP também tem o ministro Benjamin Zymler, do Tribunal de Contas da União (TCU), como um de seus professores. Ele recebeu R$ 30 mil por meio da empresa para palestrar em um evento de volta às aulas na Escola do Tribunal de Contas do Amazonas (TCE-AM), em março deste ano. Zymler também foi palestrante em um evento organizado pela ABFP em março de 2023, no qual a empresa ganhou R$ 211 mil do Conselho Federal de Medicina. A reportagem não identificou pagamento de cachê ao ministro na ocasião. A Academia também tem um contrato de R$ 2,5 milhões com o TCE de Mato Grosso.

No rol de contratos da ABFP ainda há um acordo de R$ 378 mil com TCE-MT por um curso de 31 horas “aperfeiçoamento da LGPD + Seminário”, no qual palestraram os ministros Walton Rodrigues (TCU), Paulo de Tarso Vieira (STJ) (falecido em 2023), Douglas Alencar (TST) e Antonio Saldanha Palheiro (STJ), em 2021. Não foram identificados pagamentos a esses ministros pelas falas realizadas nesse curso.

O TCE-MT contratou a ABFP outra vez, em fevereiro de 2022, por R$ 133 mil, para realizar um curso de 32h de duração com palestra do ministro Weder de Oliveira, do TCU. O mesmo integrante da Corte de Contas palestrou em um curso sobre a lei das licitações realizado na Procuradoria-Geral do Estado de Goiás. Neste caso, a ABFP embolsou R$ 136,5 mil. Não há registros de que Oliveira tenha recebido repasses para falar nesses eventos.

A lista das grandes empresas promotoras de eventos conta ainda com o IEJA. A empresa é administrada por três mulheres com trânsito no STF. Os ministros da Corte são palestrantes frequentes nos seminários da IEJA. A empresa é tocada por Greicy Schneider, Alden Mangueira de Oliveira e Fabiane Pereira de Oliveira – esta última foi secretária-geral do STF durante a presidência de Ricardo Lewandowski, entre 2015 e 2016.

Em 2019, a IEJA realizou o primeiro seminário “Supremo em Ação”, que contou com palestras do então presidente do STF, Dias Toffoli, e do ministro aposentado Ricardo Lewandowski, além de dezenas de autoridades dos Três Poderes. Para realizar o evento, o instituto recebeu R$ 30 mil de recursos da Companhia de Desenvolvimento do Estado do Rio de Janeiro (Codin), mas não foram identificados pagamentos a ministros.

Foi num evento do IEJA que parte dos ministros do STF saiu em defesa do ministro Alexandre de Moraes um dia após a revelação de que ele usou a estrutura do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para munir o inquérito das fake news. Cármen Lúcia e Flávio Dino fizeram gestos de apoio ao colega durante o seminário “A Regulamentação das Redes Sociais”, no dia 14 de agosto, em Brasília.

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Outro lado: Lei permite palestras, dizem juízes

O Estadão procurou as empresas, os tribunais, as instituições e as autoridades citados nesta reportagem.

O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, onde trabalha o desembargador João Carlos Mayer Soares, disse que as palestras são legais. “A Constituição Federal e a Lei Orgânica da Magistratura Nacional não proíbem o exercício da atividade docente por parte dos magistrados, incluindo a realização de palestras, mesmo quando remuneradas, especialmente quando estas são dirigidas a instituições que integram a Administração Pública”, disse.

A Federação das Indústrias do Estado do Ceará (FIEC) também disse que “não realizou qualquer pagamento em relação ao evento ‘Conversa com o Judiciário – Segurança Jurídica e Risco Brasil’ realizado em 02 de setembro de 2022; que não há parceria entre FIEC e Instituto Justiça e Cidadania; e que considera que não há conflito de interesses nesta situação, uma vez que o evento abordou um tema de grande relevância para o País e contou com a participação de diversas autoridades e representantes de diferentes setores, tendo sido conduzido com total transparência, imparcialidade, probidade e integridade”.

O Tribunal de Contas do Amazonas (TCE-AM) afirmou que “a contratação seguiu os ditames constitucionais e que regem a Administração Pública”. “Cumpre ressaltar que o ministro Benjamin Zymbler foi convidado pelo TCE-AM para ministrar a palestra na Corte de Contas amazonense por, entre outros, além de sua vasta experiência e expertise no Tribunal de Contas da União (TCU), ser mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, professor desde 1996, autor de diversas publicações e acumular uma experiência como jurista e palestrante”, acrescentou o tribunal.

Já o Conselho Federal de Medicina (CFM) disse que “a contratação da empresa Academia Brasileira de Formação e Pesquisa (ABFP) foi feita diretamente por inexigibilidade de licitação, com base no artigo 25, inciso II, da Lei nº 8.666/1993, para contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 da Lei nº 8.666/1993, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização”. Segundo o conselho, “a decisão foi tomada por se tratar de curso customizado (modalidade in company) para atender demanda de formação das assessorias jurídicas dos 27 Conselhos Regionais de Medicina (CRM) e do CFM”, benediciando mais de 100 pessoas, entre conselheiros, procuradores e técnicos.

“A escolha do prestador de serviço ABFP ocorreu por apresentar características que o diferenciavam competitivamente em relação ao mercado, uma vez que possui profissionais de grande experiência e formação técnica especializada”, acrescentou o CFM, dizendo que os valores da contratação foram repassados ao prestador de serviço após o fim de todas as atividades previstas.