Minha sacada para o mundo

Bandeiras do Brasil e faixas do PT viram símbolo de áreas demarcadas

PUBLICIDADE

Foto do author Leandro Karnal

O pedaço de tecido vermelho começou a ser usado por alguns militares. O povo aderiu e as roupas da cidade ostentavam a chamada “divisa punzó”. Aquela pequena franja era um sinal de pertencimento ao governo de Juan Manuel de Rosas e seu projeto político federalista. O pano passou a ser obrigatório na Buenos Aires do século 19. Aliás, a violência ocorria com quem nada estivesse usando. Neutralidade era um crime.

Os símbolos podem dizer a que grupo eu pertenço. Também proclamam que eu excluo o outro grupo. As eleições de 2022 foram acompanhadas de uma enorme adesão simbólica: bandeiras do Brasil ou com a estrela do PT passaram a decorar sacadas e automóveis.

Bandeiras no bairro da Aclimação, zona sul de São Paulo Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

PUBLICIDADE

Como entender? Os grupos do “Zap” e as redes constituíram bolhas fechadas. Vantagem? Só recebo reforço da minha convicção no espaço protegido. São como reservas biológicas naturais onde cada animal vive sem predador. Lá eu grito “Lula ladrão” ou “Bozo fascista”, e o que eu escuto ecoa o viés de confirmação absoluta. Não existe o contraditório. Minha frágil identidade recebe reforço e ajuda na tranquilidade do meu sono dogmático: estou do lado certo da luta.

Porém... há fissuras. Exemplo? O “grupo da família”. Lá surgem as brigas que dificultam (ou animam) os modorrentos encontros de domingo. A bolha treme.

Jonathan Haidt defende (A Mente Moralista, Alta Books) que somos governados por um elefante emocional e impulsivo. O grande animal convive com um ginete ágil e inteligente, que funciona como “relações públicas” do elefante. O que se busca não é a verdade, todavia a aceitação do grupo. Pertencer a uma tribo fez com que meu ancestral pré-histórico sobrevivesse. Se o outro me ameaça, dependo dos que possuem minha identidade. Isso supera quaisquer argumentos lógicos. Você já discutiu com um elefante vermelho ou verde e amarelo? Se tentou, admira a tese de Haidt.

Em algum momento, meu elefante achou que insultos de rede não eram mais suficientes. Ele sentiu seu território de caça ameaçado. Necessitou demarcar mais. As bandeiras proclamam meu apelo ao bando e delimitam minha propriedade. Sou a barreira contra o outro que eu imagino destruidor da civilização. O estandarte é como a cerca de arame farpado: não barra a visão, mas proclama a propriedade privada de forma hostil. O debate político virou uma demarcação de territórios.

Como ironiza o bom Descartes: “O bom senso é a coisa do mundo mais bem distribuída: todos pensamos tê-lo em tal medida que até os mais difíceis de contentar nas outras coisas não costumam desejar mais bom senso do que aquele que tem”. Minha bandeira na sacada/veículo proclama o óbvio: eu tenho bom senso, e você não. Triste o mundo que a inteligência e a moral tenham sido concedidas só a mim e negadas aos vizinhos... Pior: “eles” votam no condomínio! O inferno continua sendo o outro. Curiosidade para fechar o primeiro parágrafo: Rosas morreu no exílio, em 1877. Raramente o fogo é confiável, mesmo para o incendiário.

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.