BRASÍLIA - O ministro das Comunicações, Juscelino Filho, utilizou avião da Força Aérea Brasileira (FAB) e recebeu diárias pagas pelo governo para participar de leilões de cavalos de raça que chegam a valer mais de R$ 1 milhão. Era fim de tarde de quinta-feira, 26 de janeiro, quando Juscelino saiu de Brasília com destino a São Paulo para uma viagem “urgente”. A curta agenda oficial acabou no dia seguinte, somando duas horas e meia de compromissos. Da tarde de sexta em diante, o ministro, que é apaixonado por cavalos, se dedicou a agendas particulares: assessorou compradores de animais, promoveu um dos seus, recebeu prêmio em um “Oscar” de vaqueiros e inaugurou praça em homenagem a um cavalo de seu sócio.
Logo após desembarcar na capital paulista, numa quinta-feira, Juscelino foi à sede da operadora Claro, onde permaneceu por uma hora. No dia seguinte, esteve por 30 minutos no escritório da Telebrás e encerrou os encontros oficiais após uma visita de uma hora à representação da Anatel. Na tarde de sexta e ao longo do fim de semana, o ministro ficou livre para se dedicar aos cavalos. Tudo custeado com verba pública. Ao justificar o deslocamento num sistema interno da pasta, alegou que se tratava de uma “viagem urgente”.
Decreto presidencial prevê que as aeronaves da FAB devem ser solicitadas obedecendo uma ordem de prioridade. Primeiro, em casos de emergências médicas. Segundo, quando há razões de segurança. Depois, viagens a serviço. As diárias, por sua vez, são devidas em casos de viagens com necessidade de cobertura de despesas extraordinárias com o trabalho.
A agenda do titular das Comunicações não previa sua presença em nenhum dos eventos envolvendo animais. Juscelino, porém, recebeu diárias para quatro dias e meio, no total de R$ 3 mil, e usou o avião da FAB. Em um jato privado, a viagem de Brasília a São Paulo, ida e volta, custaria cerca de R$ 140 mil. O valor foi orçado pelo Estadão junto a operadoras de táxi aéreo porque os deslocamentos de ministros têm procedimentos personalizados, distintos dos da aviação comercial.
Juscelino é um entusiasta das vaquejadas, comuns no Nordeste, e criador de cavalos da raça Quarto de Milha, mas não destaca a atividade nas redes sociais onde costuma expor sua vida. O haras de sua família fica em Vitorino Freire (MA), cidade onde a irmã, Luanna Rezende, é prefeita. O Estadão revelou em 30 de janeiro que, quando exercia o mandato de deputado federal, Juscelino enviou verba do orçamento secreto para asfaltar uma estrada que dá acesso às suas fazendas na cidade.
Embora as atribuições de sua pasta não guardem relação direta com animais, o ministro das Comunicações tem usado o cargo para consolidar seu prestígio no mundo dos cavalos. No dia 27 de janeiro, por exemplo, Juscelino foi um dos homenageados na festa do “Oscar do Quarto de Milha”, na capital paulista, anunciada desde novembro. Ao receber a homenagem, o ministro afirmou que pretende alavancar o mercado de equinos.
“Na função de ministro de Estado, agora no Poder Executivo, mas também como deputado federal reeleito para o terceiro mandato, tenham certeza, cada um de vocês, apaixonados pelo cavalo Quarto de Milha, que terão sempre o meu compromisso, enquanto estiver com uma função pública, de poder defender cada vez mais o cavalo e os esportes equestres no nosso País”, disse ele.
Na programação de sábado e domingo, Juscelino passou por dois leilões em Boituva, a 122 quilômetros de São Paulo. Os eventos foram realizados em um rancho do empresário Jonatas Dantas, seu amigo e sócio em cavalos, e movimentaram R$ 7,5 milhões.
Os locutores não economizaram citações à principal celebridade política ali presente. “Você já ‘lançou’ num leilão e teve a assessoria de um ministro? O comprador ‘tá’ com assessoria do ministro”, garantiu um leiloeiro, fazendo propaganda do negócio. “O comprador do lote 8 foi com a assessoria do nosso ministro Juscelino Rezende (sobrenome do titular das Comunicações). Vai para Serraria, no Estado da Paraíba”, informou outro, no remate de um dos animais.
Um dos cavalos de Juscelino foi exibido no palco. O locutor descreveu em detalhes as características de Gunner Roxo AD para impulsionar a venda da mãe do cavalo, a égua Palooza, principal animal negociado naquele fim de semana. Os direitos sobre 50% da fêmea foram arrematados por R$ 1 milhão. A apresentação de Gunner, por sua vez, também serviu para a propaganda de um leilão futuro, quando o cavalo criado por Juscelino, em sociedade com Jonatas Dantas, será posto à venda.
Em junho de 2019, o ministro pagou R$ 500 mil por metade do potro. “Quando falaram a pessoa (que queria comprar), eu falei: ‘Não posso dizer, não’”, lembrou Dantas durante o leilão. “Essa pessoa, hoje ministro, (é) uma pessoa humana, um cara gestor. E eu abri mão. Foi vendida a metade por alta soma. Em breve vamos estar lançando ele. A gente está fazendo um projeto inovador. É bem provável que deve ser nos Lençóis Maranhenses, com show da Simone”, completou o sócio de Juscelino. Dantas é vice-presidente da Associação Brasileira de Criadores de Cavalo Quarto de Milha (ABQM) e conselheiro da Associação Brasileira de Vaquejada (ABVAQ).
Além da viagem com avião da FAB para participar de leilão de cavalos, o dinheiro público também pagou despesas de Juscelino em outro evento sem qualquer relação com o Ministério das Comunicações. No sábado, 28 de janeiro, o ministro reinaugurou uma praça em Boituva, revitalizada e agora batizada com o nome do cavalo Roxão.
A reforma da “Praça do Roxão” custou R$ 195 mil, dinheiro da prefeitura. Dantas, o empresário que é sócio do ministro e foi proprietário do cavalo, doou materiais elétricos e uma escultura de metal do animal que fez história nas competições de vaquejada. Roxão morreu em 2021, aos 27 anos, e, pelas estimativas, deixou 1,5 mil filhos. A genética dos cavalos campeões vale muito. Um memorial em homenagem ao reprodutor, com mármore branco, foi construído no terreno de Dantas. As últimas ferraduras de Roxão são conservadas até hoje.
Ao discursar, Juscelino se apresentou como integrante da “equipe do presidente da República” e prometeu internet grátis naquele espaço. “Se a gente está vivendo esse momento, muito foi fruto do cavalo Roxão, que tem proporcionado bons momentos na vida de muitos aqui”, disse ele. A participação do ministro na reinauguração da praça também não apareceu em sua agenda oficial nem nas redes sociais.
Consultoria
Ao voltar para Brasília, também com avião da FAB, Juscelino não deixou de dar atenção aos animais. Na terça-feira, 31 de janeiro, ele recebeu no gabinete seu consultor de compra de cavalos. Junior Machado compareceu à audiência acompanhado de Iggor Oliveira (PSD), prefeito do município sergipano de Poço Verde.
O encontro foi registrado no Instagram do consultor. “Tratei com prioridade o avanço tecnológico da internet 5G e TV Digital”, escreveu Machado, embora não conste qualquer atividade exercida por ele que tenha relação com a pasta do ministro. “Graças ao relacionamento adquirido ao longo da nossa trajetória no cavalo QM (Quarto de Milha), poderemos transformar esse relacionamento em melhorias para o povo de Propriá e todo Baixo São Francisco”, acrescentou o empresário na postagem.
Em um leilão organizado por Juscelino, em julho do ano passado, Machado teceu vários elogios ao político. “Você foi um grande amigo que o Quarto de Milha me deu”, disse o consultor ao microfone. “Um cara que eu sei que confia no meu trabalho.”
Machado mostrou ali a influência que tem sobre decisões de Juscelino nos negócios com cavalos. “Sempre que vai comprar, pede orientação. ‘Júnior, vamos nessa? Não vamos? ‘Tá’ caro?, ‘Tá’ barato?’. Quantas vezes eu liguei, você não estava nem assistindo (ao leilão). ‘Deputado, compre esse lote’. Você foi e comprou”, revelou ele.
Procurada, a assessoria do ministro não respondeu até o momento aos questionamentos da reportagem sobre o uso do avião da FAB e o recebimento de diárias para uma agenda privada. Junior Machado disse que “o ministro conhece muito mais de cavalos do que ele” e que a agenda no ministério foi para parabenizá-lo pelo cargo e “pedir que desse atenção ao estado de Sergipe sobre essa questão de 5G”.
Entenda as regras para utilização de voos da FAB e diárias no governo federal
Em quais condições a FAB pode transportar ministros de Estado?
Há uma ordem de prioridade estabelecida, conforme decreto presidencial atualizado em 2020. Primeiro, em casos de emergências médicas. Segundo, quando há razões de segurança. Depois, viagens a serviço.
Em caso de viagem a serviço, como o ministro deve comprovar a necessidade?
Deve registrar na agenda oficial a atividade da qual participará.
O que pode acontecer com quem utiliza o avião de forma irregular?
O responsável pode vir a responder por improbidade administrativa, em razão de uso da estrutura do Estado para benefício próprio.
O que existe no Congresso sobre isso?
Vários parlamentares consideram haver sombras na legislação sobre uso de aeronaves oficiais e pedem regras mais rígidas. Há projetos para transformar em lei os critérios e também para ressaltar as punições. Uma das propostas, de 2021, sujeitava o uso irregular dos aviões oficiais a crime de responsabilidade e de improbidade administrativa.
Por que as regras foram atualizadas em 2020 por Jair Bolsonaro?
Porque o governo foi criticado depois que o número 2 da Casa Civil, José Vicente Santini, quando temporariamente à frente da pasta, usou avião da FAB com exclusividade para ir da Suíça à Índia para agenda oficial. Ele acabou exonerado, à época, mas readmitido. O novo decreto vedou o uso de avião por substitutos e interinos.
E quanto às diárias? Quais as regras?
Estão previstas em um decreto de dezembro de 2006, baixado por Lula. Os valores foram atualizados por decreto de julho de 2022, de Jair Bolsonaro. São devidas em casos de viagens a serviço em outro ponto do território nacional com necessidade de cobertura de despesas extraordinárias com o trabalho.
Com o que a diária pode ser usada?
Para despesas com pousada, alimentação e locomoção.
Qual o valor da diária para um ministro de Estado?
Varia conforme cidades e regiões. Para Brasília, Manaus, Rio de Janeiro e São Paulo o valor é R$ 668,15. Juscelino Filho teve 4,5 diárias, um total de R$ 3.006,67. As agendas oficiais ocorreram apenas em dois dias, sendo duas horas e meia de compromissos ao todo.
Por que ele recebeu essa meia diária?
É a regra para o dia de retorno à sede do serviço. Juscelino Filho voltou a Brasília em uma segunda-feira (30/01), depois do fim de semana nos leilões de cavalos. Seu último compromisso oficial registrado na agenda foi na sexta-feira (27/01) encerrado ao meio dia.
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