BRASÍLIA – Ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ), do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior do Trabalho (TST) participaram de eventos promovidos por entidades e pessoas envolvidos em processos eles relataram. No STJ, um ministro palestrou a convite de um político cujo processo criminal ele arquivou. No TST, ministros mantêm empresa de eventos patrocinada por grupos com interesse em julgamentos do tribunal. Segundo juristas consultados pela reportagem, a prática pode configurar conflito de interesse. Procurados, os ministros não retornaram o contato até a publicação desta reportagem.
O Estadão deste domingo, 1º, mostra o funcionamento da indústria de palestras de juízes. Ao todo, a reportagem mapeou os cachês recebidos por dez magistrados em 17 eventos, de junho de 2021 a agosto deste ano. Os cachês chegam a R$ 50 mil e foram pagos por órgãos públicos, entidades empresariais e conselhos profissionais. As informações foram reunidas pela reportagem usando a Lei de Acesso à Informação e consultas a diários oficiais, além de entrevistas com pessoas ligadas ao tema.
Ao menos dois ministros do Superior Tribunal de Justiça foram convidados para palestrar por um político cujos casos eles relataram na Corte. Em ambos os casos, os cachês, de R$ 15 mil, foram pagos com dinheiro público e recebidos pelos magistrados por meio de suas empresas de palestras. Foram contratados os ministros Paulo Dias de Moura Ribeiro e Antonio Saldanha Palheiro. Ambos foram a Cuiabá (MT) para palestrar a servidores da Assembleia Legislativa do Estado, a ALMT. Em ambos os casos, quem promoveu as visitas foi o 1º Secretário da Assembleia, o deputado estadual Max Joel Russi (PSB).
Antonio Saldanha Palheiro foi à ALMT em maio deste ano para uma fala com o título “Saúde no Brasil: Aspectos Jurídicos da Judicialização, Fraude e Inteligência Artificial”. O cachê de R$ 15 mil foi pago à empresa ASP Treinamento e Desenvolvimento LTDA, o que implica em menos impostos a serem pagos. Aberta em novembro passado, a firma usa e-mail institucional no servidor do STJ: asp@stj.jus.br. Após a palestra, Palheiro recebeu das mãos de Russi o título honorífico de cidadão mato-grossense. O deputado do PSB foi o autor do projeto de lei da homenagem e assina o despacho para a contratação da palestra.
Até junho de 2022, Palheiro relatou no STJ um processo criminal movido contra Russi. O político era acusado da suposta prática de fraude à licitação quando era prefeito de Jaciara (MT), cidade de 28 mil habitantes a 144 km de Cuiabá. Em 2012, um pedido de habeas corpus de Max foi rejeitado pelo ministro Og Fernandes, que mandou o processo seguir. Em 2022, já como relator do caso, Palheiro arquivou o processo, diante da falta de interesse do advogado que movia a ação contra o deputado.
Na última segunda-feira, 26, foi a vez do ministro Moura Ribeiro, também do STJ, ir a Cuiabá para uma palestra com o tema “Direitos Humanos e Meio Ambiente”, também na ALMT. Servidores da Casa e convidados do Judiciário local acompanharam a preleção, que seguiu o mesmo ritual, com direito a título de cidadão mato-grossense entregue por Russi. “São dois temas importantíssimos, de grande relevância, e o ministro conhece muito dessa área e a gente pretende, com isso, colaborar com a população. É um tema importante, meio ambiente e direitos humanos, e que não pode ser esquecido”, disse Max Russi à agência de notícias da ALMT.
O cachê de Moura Ribeiro também foi de R$ 15 mil, pagos pela Assembleia, sem licitação – a lei não exige concorrência para este tipo de contrato. O ministro recebeu por meio de sua empresa, o “Instituto MR de Estudos Jurídicos Limitados”. Aberta em dezembro de 2023, a empresa está sediada em um apartamento residencial em Águas Claras, bairro de classe média de Brasília. Moura Ribeiro consta, nos registros da Receita Federal, como “sócio-administrador” da firma, o que é vedado de forma expressa pela Lei Orgânica da Magistratura.
Entre janeiro de 2022 e junho passado, Moura Ribeiro relatou um processo de Russi no STJ: um recurso dele e de mais duas pessoas contra decisão anterior, num processo de cobrança de dívidas movido pelo Banco do Brasil. Em março de 2023, Moura Ribeiro negou o recurso do deputado. Mais tarde, a decisão dele foi reiterada pela turma do STJ.
A situação se repete em algumas das palestras dos ministros do STF. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) figura como parte ou como amicus curiae (amigo da Corte, que permite se manifestar nos autos) em várias ações no Supremo. Pelo menos uma delas, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7382, tem como relator o ministro Luiz Fux. Como mostrou reportagem do Estadão, o ministro é convidado frequente de eventos da CNI. Em setembro de 2022, Fux esteve em Fortaleza (CE) para proferir a palestra “Segurança Jurídica e o Risco Brasil” em evento da entidade. A palestra foi organizada pelo Instituto Justiça e Cidadania (IJC).
“O evento ‘Conversa com o Judiciário’, realizado no dia 2 de setembro de 2022, na sede da Federação das Indústrias do Estado do Ceará (FIEC), em Fortaleza (CE), contou com apoio financeiro da CNI para cobertura de custos de logística, alimentação e cerimonial – por tratar de tema relevante para o desenvolvimento do país, conforme avaliação da CNI”, disse a entidade ao ser questionada pelo Estadão.
Ao Estadão, a CNI disse ter investido R$ 145 mil na realização do evento em Fortaleza, mas afirmou que não houve pagamento “por parte da CNI” a Fux. Em março daquele ano, o ministro já tinha palestrado em outra conferência da CNI. A ADI 7382 discute a constitucionalidade de uma norma tributária do Estado de Tocantins, que aumentou a alíquota da contribuição destinada ao Fundo Estadual de Transporte (FET) local. A ação foi protocolada meses depois do último evento de Fux na CNI, em abril de 2023, e está aguardando uma decisão do ministro desde agosto passado, há mais de um ano. Procurado, Fux não respondeu até a publicação desta reportagem.
No Tribunal Superior do Trabalho (TST), a proximidade entre ministros e entidades do setor portuário durante eventos já gerou controvérsia, inclusive com menção ao tema em plenário, por parte de outros magistrados.
No fim de 2022, os ministros do TST Guilherme Caputo Bastos e Douglas Alencar fizeram parte da comissão organizadora do “II Congresso Nacional da Magistratura do Trabalho”, promovido pela Academia Brasileira de Formação e Pesquisa (ABFP) na cidade de Foz do Iguaçu (PR). Como mostrou o Estadão, a ABFP é uma das empresas mais importantes do ramo de palestras de ministros de tribunais superiores.
O evento em Foz do Iguaçu teve duas mesas dedicadas a discutir o “futuro e os desafios da relação de trabalho portuário” na visão das empresas e associações. Caputo Bastos preside a Academia Brasileira de Direito Portuário e Marítimo (ABDPM), em sociedade com o advogado Marcelo Kanitz. A ABDPM conta com patrocínio de empresas privadas do setor, como a OGMO Santos e a Brasil Terminal Portuário.
Na segunda-feira depois do evento, o órgão especial do TST, do qual faz parte Caputo Bastos, votou uma ação movida pelo Sindicato dos Operários e Trabalhadores Portuários de São Paulo contra a Companhia de Docas do Guarujá, a Terminal de Granéis do Guarujá e outras empresas do setor, por supostas contratações irregulares de funcionários. Kanitz, que trabalha com Caputo Bastos na ABDPM, atuou como advogado no julgamento, que terminou com vitória das empresas.
Um dos votos vencidos foi do ministro Luiz Philippe Vieira de Mello. Em sua fala, ele chegou a dizer que o tema das relações de trabalho nos portos “tem sido debatido em grandes congressos recentemente”, mas que o órgão especial da Corte não era o fórum adequado para tomar a decisão.
A relação próxima entre ministros, empresas e entidades de classes em eventos foi alvo de nota divulgada por sindicatos de portuários em julho do ano passado. Uma carta assinada por 73 organizações integrantes da Federação Nacional dos Portuários argumenta que “as participações especiais de juízes, desembargadores e de ministros são, em geral, estrategicamente direcionadas a proferir palestras ‘coincidentemente’ em defesa de posições desses empresários, referentes de assuntos em pauta na Justiça do Trabalho”.
Para especialistas consultados pela reportagem do Estadão, a prática de receber cachês pelas palestras pode configurar conflito de interesse.
Para o professor Conrado Hubner Mendes, da Universidade de São Paulo (USP), a indústria das palestras abre a porta para interferências indevidas sobre os magistrados. “Lobby no Poder Judiciário não tem nada a ver com eventos com pessoas que têm relações pessoais, é um conjunto de encontros para a construção de relações de influência e abertura de portas”, afirmou. “A Constituição, em princípio, proíbe que o juiz seja empresário, que seja empresário de si mesmo ou que disfarce a sua prática empresarial por meio de uma entidade jurídica”, disse.
“Vamos pensar em palestras para grandes empresas, que tenham ações (no Judiciário) ou que tenham potencial para figurar no polo passivo de ações judiciais. Acho que isso é muito fácil de perceber (a existência do conflito de interesse), e de evitar. Às vezes, vai se dizer ‘foi apenas uma palestra sem nenhum contato com a direção da empresa’. Mas, às vezes, os valores são tão exagerados que passa a ideia de que ‘olha, eu acabei comprando o seu passe’, disse o jurista e desembargador aposentado Walter Maierovitch.
Outro lado: Federação diz que não há conflito de interesse
O Estadão procurou todas as empresas, os tribunais, as instituições e as autoridades citadas nesta reportagem.
A Federação das Indústrias do Estado do Ceará (FIEC) disse que “não realizou qualquer pagamento em relação ao evento ‘Conversa com o Judiciário – Segurança Jurídica e Risco Brasil’ realizado em 02 de setembro de 2022; que não há parceria entre FIEC e Instituto Justiça e Cidadania; e que considera que não há conflito de interesses nesta situação, uma vez que o evento abordou um tema de grande relevância para o País e contou com a participação de diversas autoridades e representantes de diferentes setores, tendo sido conduzido com total transparência, imparcialidade, probidade e integridade”.
A CNI afirmou que “enquanto ocupava o cargo de presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Luiz Fux participou de eventos organizados ou apoiados pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) para proferir a palestra “Segurança Jurídica e Risco Brasil”. “Não houve qualquer pagamento por parte da CNI em virtude da participação do ministro nesses eventos”, informou.
Por nota, a Brasil Terminal Portuário (BTP) informou “que não é patrocinadora da Academia Brasileira de Direito Portuário e Marítimo (ABDPM)”. “A Companhia esclarece que chancelará um evento específico e que ainda será realizado – o ‘I Congresso Nacional de Direito Marítimo da ABDPM’ – com o propósito de contribuir para o fomento de conhecimento técnico sobre temas relevantes para o setor de Direito Marítimo Portuário. A BTP reafirma que pauta a sua gestão e todos os seus relacionamentos por princípios éticos e transparentes, seguindo, com seriedade e em respeito à regulação aplicável, as melhores práticas de compliance”, disse.
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