Da cadeirada de José Luiz Datena (PSDB) em Pablo Marçal (PRTB) ao soco de Nahuel Medina, assessor do ex-coach, no rosto de Duda Lima, marqueteiro de Ricardo Nunes (MDB), os debates eleitorais entre candidatos à Prefeitura de São Paulo em 2024 foram marcados, até o momento, por uma escalada nos episódios de hostilidade entre as campanhas sem precedentes.
Pesquisa de intenção de votos da Quaest divulgada nesta terça-feira, 24, mostra que 81% do eleitorado da capital paulista têm avaliado os confrontos entre os postulantes ao cargo de prefeito como de “baixo nível”. Ou seja, entre cinco eleitores paulistanos, quatro avaliam os debates negativamente.
A avaliação é compartilhada tanto por eleitores de esquerda quanto de direita, segundo uma pesquisa qualitativa do Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação (INCT). De acordo com o estudo, a maior parte dos entrevistados considera que, sem a aplicação de regras mais contundentes pelos mediadores, os debates têm se convertido em desrespeito, troca de ofensas e “baixaria”, desvirtuando o propósito original dos encontros, de apresentação de propostas aos eleitores.
O estudo indica que, diante do exposto nos oito eventos realizados até o momento, eleitores de diferentes setores do espectro político querem normas mais rígidas para debates eleitorais. As experiências internacionais indicam que não há um modelo único para a regulamentação, que poderia ser aplicada tanto via uma maior participação do poder público no tema quanto por uma autorregulação, ou seja, uma iniciativa das próprias organizadoras em aprimorar a dinâmica dos eventos.
A regulamentação pelo poder público poderia partir tanto do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) quanto do Congresso Nacional. Procurada sobre o tema, a Corte não respondeu. No Legislativo, não há iniciativa proposta para criar normas específicas para mudar o modelo de debates.
Debates no Brasil
A legislação brasileira regulamenta debates somente no aspecto formal. Aos encontros entre candidatos a cargos majoritários, como prefeituras, governos estaduais e Presidência, a lei exige que as emissoras de radiodifusão convidem, obrigatoriamente, os postulantes que estejam filiados a partidos com cinco ou mais representantes no Congresso.
Além disso, os organizadores devem garantir aos participantes “tratamento isonômico”, como distribuição igualitária do tempo de fala e paridade na dinâmica do embate.
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Fora a normativa quanto a quem o convite é obrigatório e a garantia de isonomia, não há regulação sobre a dinâmica dos eventos. Segundo a Lei das Eleições (nº 9.504/97), as regras de cada programa são expressamente facultadas aos organizadores. “O debate será realizado segundo as regras estabelecidas em acordo celebrado entre os partidos políticos e a pessoa jurídica interessada na realização do evento”, diz a legislação.
Ainda que a dinâmica de cada programa esteja facultada ao organizador do evento, a Lei das Eleições considera que debates são espaços para a divulgação de quem são os candidatos na disputa e quais são seus planos de governo, a exemplo da propaganda política veiculada no horário eleitoral gratuito e nas inserções na grade de programação das emissoras de rádio e TV.
Como já são admitidas regras mínimas nos debates pela legislação eleitoral, uma regulamentação é considerada viável por especialistas. Mudanças podem ocorrer, inclusive, no modelo habitualmente adotado no Brasil – com embates diretos entre candidatos em blocos de perguntas e respostas –, a partir das experiências de outros países nos quais há programas do gênero.
Modelo de debate nos Estados Unidos
Os Estados Unidos são pioneiros na realização de debates televisionados, que ocorrem no país desde a eleição presidencial de 1960, quando houve o embate entre o democrata John Kennedy e o republicano Richard Nixon. A literatura política dos Estados Unidos registra que a imagem transmitida por Kennedy ao público naquele programa foi decisiva para a sua vitória.
A legislação brasileira para debates se assemelha à americana ao facultar às emissoras a organização das regras. Nos Estados Unidos, contudo, a praxe é garantir aos dois grandes partidos do país, o Democrata e o Republicano, forte influência nos canais de mídia para a definição das dinâmicas dos programas.
A organização bipartidária que por mais tempo participou da concepção da estrutura dos debates americanos foi a Comissão Presidencial de Debates (CPD), que atuou nos debates entre 1988 e 2020. Neste ano, após atritos com o Partido Republicano, a CPD não tem organizado os encontros entre Donald Trump e Kamala Harris, que ficaram a cargo de cada emissora.
Para o advogado Antonio Paulo de Mattos Donadelli, mestre em Direto Político e Econômico, o modelo americano não se trata de “uma falta de regulamentação, mas de uma regulamentação mais livre”. O fato de os confrontos ocorrerem de forma ordeira está relacionado ao amadurecimento da organização dos programas.
Segundo o advogado, a tradição de décadas de debates televisionados rende ao país uma expertise com o modelo, compartilhada tanto pelos dois grandes partidos quanto pela “postura das TVs”, o que tende a aperfeiçoar o acordo celebrado entre as partes interessadas. “As regras negociadas ajudam”, disse Donadelli.
Modelo de debate nos Canadá
No Canadá, os organizadores são livres para estabelecer regras próprias em seus debates, mas devem cumprir uma regulamentação de 2019 que prevê normas claras quanto a quem o convite é obrigatório.
Até então, não havia legislação específica para os debates no país, o que causava dissenso entre as emissoras quanto aos candidatos que eram convidados ou não por cada canal de mídia.
Modelo de debate no Reino Unido
Se a regulamentação no Canadá foi motivada por um desencontro entre os critérios adotados por cada emissora, a situação no Reino Unido é inversa. Não há regulação pública sobre o tema, que fica a cargo dos principais canais de mídia do país.
O acordo não é formal, o que não o faz impositivo, mas há diretrizes para que os debates garantam tempo isonômico entre os candidatos, além de especificar dinâmicas para o contraponto de ideias, como o direito de resposta.
Modelo de debate no México
Um exemplo de legislação robusta sobre o tema é a do México, na qual há um comitê dentro da autoridade eleitoral do país que se dedica a regulamentar datas, horários e temas que serão abordados em cada encontro entre candidatos à Presidência. Trata-se da Comisión Temporal de Debates (CTD) – Comissão Temporária de Debates, em tradução livre.
A CTD determina a realização dos debates em dias e horários nobres e define, em acordo com as campanhas, os eixos temáticos a serem abordados durante os programas. O objetivo é delimitar que a discussão de propostas durante os encontros, com os respectivos contrapontos, ocorram conforme os critérios preestabelecidos.
Para fazer valer as diretrizes, a lei mexicana garante ao mediador de cada debate maior poder de moderação se comparado aos programas brasileiros. No México, o papel do mediador é garantir não apenas o respeito mútuo entre os participantes, mas também o cumprimento da discussão de ideias proposta pela comissão de debates.
Dessa forma, quando o apresentador julgar que um candidato tangenciou o tema de uma pergunta, é possível instar o participante a responder a questão de forma satisfatória, além de desmentir informações sabidamente inverídicas ou requerer ao participante que apresente os dados que embasaram a afirmação. A cada transgressão, cabe a aplicação de uma advertência.
Regulamentação no Brasil
Para Antonio Paulo de Mattos Donadelli, a CTD mexicana pode servir como inspiração à regulamentação de debates no Brasil, respeitada a particularidade do sistema jurídico e eleitoral brasileiro.
Segundo Donadelli, a inspiração não se trata de pura e simplesmente “incorporar o modelo mexicano” ao País, mas, sim, de avaliar a criação de um conselho fiscalizador de debates, com a participação de servidores do TSE, membros de partidos políticos, eleitores que representem setores da sociedade civil e representantes de empresas de telecomunicação.
“As limitações do debate não permitirão que seja produzida ali uma tese aprofundada sobre o tema, mas, sim, que sejam colocadas as divergências”, afirmou Antonio Paulo Donadelli. “Os candidatos vão ter que estar mais bem preparados para isso. Eles vão ter que conhecer realmente o (próprio) programa, saber da viabilidade das suas propostas, se elas (propostas) param em pé ou não.”
A criação de um conselho sobre o tema não constitui a única via para que a Justiça Eleitoral interceda nos debates eleitorais. É o que defende Felippe Mendonça, professor de direito constitucional. “Os canais (de radiodifusão) devem ser colaboradores da Justiça Eleitoral. O apresentador pode ser da emissora, mas tem que ter um juiz (eleitoral) ali que diga se o candidato está respondendo ou não, e que, antes, as perguntas sejam submetidas a ele, para que ele veja se são pertinentes e adequadas”, disse o professor.
“A liberdade das emissoras não é absoluta, pois já há na lei algumas balizas”, afirmou Mendonça. “Considero que as soluções passam por termos uma análise eleitoral presente e com as perguntas feitas por especialistas.” A especialidade na formulação das perguntas, segundo o professor, poderia ser contemplada com a participação de representantes da sociedade civil, como professores em temas relativos à educação, médicos e membros do Conselho Federal de Medicina para assuntos de saúde ou advogados para perguntas sobre legislação.
“Engessar o debate ou torná-lo muito professoral também pode ser um problema”, ponderou Donadelli. Segundo o advogado, o ideal é que o programa se torne “mais educativo” sem que, com isso, perca-se “o interesse da população”. “Ainda tem que ser permitida essa questão de um comentar a resposta do outro, (mostrar) a personalidade de cada um que fala”, afirmou.
Outra possibilidade é a autorregulamentação dos debates, ou seja, uma reformulação no modelo que provenha dos próprios organizadores, a exemplo do que ocorre no Reino Unido. Entre as alternativas, estão a incorporação de eixos temáticos de maior interesse dos eleitores, com regras mais rígidas para cumprimento, de fato, do roteiro estabelecido, e a dotação de maiores poderes de moderação para os apresentadores, por meio de normas acordadas com as campanhas.
Em debates com os candidatos em São Paulo, após o episódio da cadeirada, já há uma tentativa para aumentar o poder do mediador. No debate entre candidatos promovido pelo Flow News, por exemplo, o mediador Carlos Tramontina expulsou Pablo Marçal durante as considerações finais do candidato do PRTB. O empresário referiu-se a Nunes como “bananinha” e foi alertado que, em caso de reincidência, seria retirado do programa, o que ocorreu no final do confronto.
O instituto da advertência também foi utilizado por Amanda Klein, mediadora do debate da RedeTV em parceria com o UOL. Para apartar uma briga aos berros entre Marçal e Nunes, Klein anunciou a advertência a ambos. Como efeito, um embate tão ríspido quanto o do ex-coach contra o prefeito não se repetiu entre nenhum dos candidatos até o final do programa.
“Há várias possibilidades de regulamentação. O mais importante é a percepção de que, do jeito que está, não está bom”, disse Felippe Mendonça.
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