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Labirintos da Política

Opinião | Caso de Faustão reforça a importância de manter o Ministério da Saúde longe do apetite do Centrão

Mesmo sedimentada, para que a política de transplantes possa avançar, ela precisa de recursos e de gestão técnica

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Atualização:

O apresentador Fausto Silva terá que ser submetido a um transplante de coração. Desde que ele mesmo divulgou a informação em suas redes sociais, entre os comentários, chamaram a atenção aqueles que mostram o grau de desconhecimento sobre um dos mais importantes programas do Ministério da Saúde, o Sistema Nacional de Transplantes (SNT). Faustão entrou para a lista única de transplante de coração que vale para todos os pacientes, independentemente da origem – sistema público ou privado – e organizada de acordo com a gravidade do caso, ordem de entrada e tipagem sanguínea. E muitos se perguntaram: Como assim? Não teria a estrela do showbusiness algum tipo de privilégio?

Não. O SNT é considerado democrático, solidário, humanitário e é parte de um dos grandes modelos que estruturam os serviços de saúde pública em muitos países, como o Brasil, que seguem o conceito de universalidade do Sistema Único de Saúde (SUS). Na lista que inclui o nome de Faustão há, neste momento, 386 pacientes catalogados pelos critérios citados acima. A relação total tem 65.911 nomes. E todos eles – mesmo que seus transplantes sejam feitos na rede privada – neste caso, usuários do SUS, o pilar de uma das políticas públicas mais inclusivas no Brasil e que provou sua resiliência e força durante a pandemia da covid-19.

O apresentador Fausto Silva foi incluído na lista nacional de transplantes em razão de problemas no coração Foto: Reprodução / Instagram

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E é por isso que, entre tantas outras razões, enquanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) posterga a reforma ministerial e mede o quanto pode ceder aos interesses partidários, o caso de Faustão reforça a importância de manter o Ministério da Saúde à margem do apetite das legendas e com profissionais reconhecidos no setor.

É bem verdade que Lula já anunciou que a ministra Nísia Trindade ficará onde está. Melhor que assim seja. Nunca se sabe, porém, o tamanho da cobiça dos políticos, sobretudo do Centrão, e a necessidade do presidente de negociar, em troca de governabilidade e votos no Congresso Nacional. Em Brasília, muitas vezes, o combinado, ao contrário do que se costuma dizer, sai caro. Nesse caso, ninguém sabe o que pode acontecer com a Saúde.

Assim como também é bem verdade que o SNT, seja quem for que estiver no comando da pasta, vem passando por mudanças - apenas no sentido de aperfeiçoar e dar melhores condições aos envolvidos no trabalho - e ainda não apareceu um aventureiro querendo reformular regras que funcionam há décadas. “É uma política sedimentada que ao longo de todos estes anos tem demonstrado a importância dos transplantes e o quanto esse trabalho é sério e salva vidas. Não se modificou nem desvirtuou”, disse à coluna o diretor da divisão de cirurgia cardiovascular, vice-presidente do InCor, Fábio Jatene,

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Entretanto, mesmo sedimentada, para que a política de transplantes possa avançar, ela precisa de gestão técnica e recursos. O Ministério vem mantendo uma média entre, aproximadamente, R$15 milhões a R$17 milhões de seu orçamento para o SNT. Mas especialistas na área têm considerado ampliar as verbas via emendas destinadas principalmente à área que trabalha com a captação de órgãos. Por que se as equipes médicas estão mais do que preparadas e a rede hospitalar estruturada, a captação é o calcanhar de Aquiles do SNT.

Lula já reiterou que não pretende tirar Nísia Trindade do cargo, mas pasta é alvo de cobiça do Centrão, em razão da capilaridade e do volume de verbas que movimenta. Foto: Wilton Junior / Estadão

Em países desenvolvidos como a Espanha, uma das pioneiras na área, o percentual de recusas para doar os órgãos de um familiar está entre 15% e 18%. No Brasil, no ano passado chegou a 43%, segundo dados da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO). “Precisamos fazer e temos condições de fazer muito mais transplantes do que conseguimos. Mas esbarramos na insuficiência de doações de órgãos”, explica Jatene.

A lei dos transplantes estabeleceu que os órgãos da pessoa morta pertencem ao Estado. Isso não dá ao Estado o direito de retirá-los sem autorização de um familiar, mesmo que em vida o doador tenha manifestado esse desejo. Mas dá, sim, autonomia para decidir a quem e como serão destinados. Só que ninguém ainda inventou uma fórmula ideal para dizer a uma mãe, cujo filho teve morte cerebral, que ela, nesse momento, pode ter o altruísmo e a generosidade de doar os órgãos daquele que não terá mais chance de voltar a viver.

É difícil dizer que em um país com tantas e tão grandes carências na área de saúde e no próprio SUS, resguardar programas como o dos transplantes deva ser uma prioridade. Mas, mesmo com tantas outras demandas, esta é uma tarefa que a população deve assegurar, independentemente de classe social. A lista é uma garantia de direitos iguais em uma sociedade tão desigual como a nossa. E a esta altura nenhum país do mundo pode se dar ao luxo de jogar fora um critério – e um sistema - como esse.

Opinião por Monica Gugliano

É repórter de Política do Estadão. Escreve às terças-feiras

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