A poucos metros do meu prédio ainda resistem em pé algumas casas. Neste domingo, quando saí para trabalhar, encontrei sentada na pequena varanda de seu jardim, dona Vicenta. Uma dessas italianas de braços fortes, seios fartos e baixa estatura que quase não vemos mais. Perguntei-lhe se já tinha votado ou se preparava para ir até a seção eleitoral. Sem muita delonga, ela me respondeu: “Olha, minha filha, estou com sessenta e poucos, pago R$ 3,51 de multa se eu não aparecer. Meu marido, Nicola, paga a mesma coisa. Os dois, com esse dinheiro, mal compramos um litro de leite. Não gostei desses candidatos, eles não fazem nada”.
O fenômeno – não de que os políticos e os candidatos não fazem nada – do crescimento da chamada alienação eleitoral (soma das abstenções com os brancos e nulos), como explica o cientista político Antônio Lavareda, surgiu a partir de 2012, quando ficou em 18,48% na capital paulista, por exemplo. Até então, havia uma certa estabilidade nesses percentuais. Foi em 2016, quando a Lava Jato apresentou parlamentares, ministros e empresários em um bando de meliantes, achacadores do erário, que a aversão a política começou a crescer. Em 2018 estava consolidada a ponto de os brasileiros elegerem o ex-capitão Jair Bolsonaro, derrotando Fernando Haddad que substituía o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, encarcerado na sede da Polícia Federal em Curitiba. Veio 2020, com a pandemia, e, em 2022 voltou a cair um pouco, ficando em quase 30,81% em São Paulo;. A atual: 27,34% no primeiro turno e 31,54% no segundo.
Quando minha vizinha falou, fiquei quieta, lembrei que um litro de leite, dependendo do supermercado, custa um pouco mais que R$ 5,00, R$ 6,00, ou R$ 7,00. Pensei também que, se há uma classe associada ao “não fazer nada”, essa é a dos políticos. E, se eles não fazem nada, para que lhes dar um mandato? É o que se perguntam muitos cidadãos. Como dizem os eleitores que elaboram melhor o tema, “pelo menos não gastam o dinheiro dos impostos em carro, passagem de avião e outras mordomias”. O termo “mordomias” foi cunhado por um dos grandes repórteres brasileiros, Ricardo Kotscho, que fez e publicou uma série de matérias no Estadão, em 1976.
Definia a vida fácil, as regalias, as viagens, tudo que bancavam com o dinheiro público os ministros e autoridades da ditadura militar que caiu em 1985. E o vocábulo nunca mais saiu do palavreado nacional. Desde aquele ano, ainda foram precisos mais quatro para que os brasileiros, cheios de orgulho, tirassem o título eleitoral e votassem para presidente da República. Finalmente, depois de 21 anos, a população podia festejar a luta pela conquista da democracia.
Acontece que essa conquista foi sendo naturalizada com o passar do tempo. Não só isso, a política, como diz o diretor da Paraná Pesquisas, Murilo Hidalgo Lopes de Oliveira, foi se transformando em pouca proposta e muito xingamento. “O eleitor vai deixando de acreditar que por meio das transformações políticas pode realizar seus sonhos, melhorar de vida”, diz ele.
A presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ficou preocupada com a abstenção grande em todo o Brasil. Entre ontem e esta segunda-feira repetiu que iria investigar, estudar o fenômeno. Na prática, não sei se esses estudos trarão muitos esclarecimentos. Eles certamente estão na ação do Estado que não entrega serviços públicos de qualidade. É a forma que os cidadãos encontram de “punir” tanto blá, blá, blá e pouca ação. E até de os novos políticos se darem conta de que, como diz uma estrofe da canção “Comida”, dos Titãs, não bastam as cestas, os cartões e outras políticas compensatórias: “A gente não quer só comida. A gente quer comida, diversão e arte.”
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