Em tempos de relações tão delicadas e sensíveis entre militares e os civis do governo, o estrondoso sucesso do filme “Ainda Estou Aqui” está mexendo com as Forças Armadas. No mínimo porque trata de um período da instituição que os militares das novas gerações querem esquecer com todas as suas forças. E, em segundo lugar, porque as indicações aos principais prêmios do cinema mundial – inclusive o Oscar – além do mais que merecido e inédito Globo de Ouro de melhor atriz, conquistado por Fernanda Torres, revelaram ao mundo que, se hoje o Brasil é uma democracia, nossa história passou por períodos de trevas e escuridão durante a ditadura militar, após o golpe de 1964, que muitos tentaram repetir no 8 de janeiro de 2023.
A história de Rubens Paiva, que tem levado milhares aos cinemas, interpretada por Selton Mello, Fernanda Torres e dirigida por Walter Salles, relata a dramática situação de uma família de classe média que se vê envolvida na crueldade do regime militar. O empresário e político brasileiro, eleito em outubro de 1962 deputado federal por São Paulo, pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), foi cassado logo após o golpe militar, por meio do Ato Institucional nº1, em junho de 1964. Esteve no exílio e se instalou no Rio de Janeiro.
Na madrugada de 20 de janeiro de 1971, seis agentes armados com metralhadoras invadiram a casa do deputado cassado. Rubens Paiva foi levado em seu carro para prestar depoimento no Quartel da 3ª Zona Aérea, à época comandada pelo tenente-brigadeiro João Paulo Moreira Burnier. Desde seu sequestro, já foram iniciadas as torturas. No mesmo dia 20 de janeiro, Rubens Paiva, Cecília de Barros Correia Viveiros de Castro e Marilene de Lima Corona foram conduzidos para o DOI-CODI do I Exército (RJ).
Os familiares do deputado permaneceram incomunicáveis, detidos em sua casa durante todo o dia. No dia seguinte, Eunice Paiva e sua filha Eliane, então com 15 anos, foram também levadas ao DOI-CODI do I Exército. Nunca mais tiveram notícias dele e nem mesmo souberam o que acontecera com seu corpo, jamais encontrado. Eunice até sua morte (1929-2018) tentou o reconhecimento do Estado.
Somente agora, a certidão de óbito do engenheiro e ex-deputado federal Rubens Paiva foi corrigida, na última quinta-feira, 23. Na nova versão do documento, emitida pelo Cartório da Sé, na capital paulista, consta a informação de que ele desapareceu em 1971 e teve morte violenta causada pelo Estado.
O mal estar, a aspereza e a sobriedade com que o diretor tratou o tema – não dando margem a sentimentalismos - virou tema de conversa de corredor entre os militares e até de reclamações aos comandantes, que nada podem fazer, à exceção do que tem feito até agora: fazer de conta que o filme e, principalmente, a história não existe.
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A tortura sempre foi um tema mal digerido nas Forças Armadas. Tanto por aqueles que sempre discordavam da brutalidade dos métodos (o pensamento dos atuais comandantes) quanto por aqueles mais antigos que sempre consideraram que o Brasil estava numa guerra contra o comunismo, portanto excessos contra os inimigos sempre podiam ser tolerados.
Ao longo de minha carreira pude ouvir todos os lados. Poucos talvez me marcaram tanto quanto uma entrevista que fiz com o ex-ministro do Exército general Leônidas Pires Gonçalves. Um dos homens que na história recente teve mais poder na Força e responsável por muitas das reformas e modernização, Leônidas conversava comigo quando lhe perguntei pelo jornalista Vladimir Herzog (1937-1975), assassinado em uma cela das dependências do Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (antigo Doi-Codi), órgão de repressão e da prática de torturas à época do regime militar. Ele teve seu atestado de óbito forjado como “suicídio”, fraude que foi desconstruída anos depois.
O general que devia medir aproximadamente 1,90,m se levantou da cadeira, olhou para meu 1,55m e me repreendeu. Disse que eu não deveria ficar repetindo essa mentira, essa leviandade. Ele mesmo investigara muito a morte de Herzog e todas as provas levavam ao suicídio. “Não havia sequer um indício de que Herzog fora assassinado”, dizia.
Pires Gonçalves morava a meia quadra da praia, no Leblon. Depois de mais um tempo, em que ele continuou desmentindo torturas, falando da excelência do Exército e me contando que o então general de Exército Augusto Heleno fora “seu peixinho” - em jargão militar um dos favoritos –, nos despedimos. O sol brilhava, o mar estava azul e, em minha cabeça, passou a tocar “Angélica”, a canção que Chico Buarque fez para a estilista Zuzu Angel, cujo filho Stuart, também fora preso, torturado e nunca encontrado: “Só queria embalar meu filho, que mora na escuridão do mar”.