BRASÍLIA - O ex-presidente José Sarney abriu ontem a casa, no Lago Sul, para comemorar 93 anos. A recepção reuniu o poder em Brasília e, pelo papel do ex-senador na transição democrática, ganhou um simbolismo no atual momento político. Nas rodas de conversas ao pé do ouvido, se falou de tudo. Desde a nomeação do próximo ministro do Supremo Tribunal Federal, a tentativa de golpe de 8 de janeiro e a relação desconfiada entre o governo Lula e a cúpula do Congresso.
Ministros do STF, o procurador-geral da República, autoridades do primeiro escalão do Executivo, lideranças do Congresso, governadores, velhos colaboradores e uma romaria de políticos do Maranhão foram “tomar a benção”. “Já bati continência”, disse a colegas o ministro Wellington Dias, da pasta do Desenvolvimento Social e Assistência Social, Família e Combate à Fome, depois de cumprimentar Sarney. Do grupo do ex-presidente Jair Bolsonaro, o senador “astronauta” Marcos Pontes, do PL de São Paulo, era uma das “celebridades” da festa.
O ministro Alexandre Moraes, do Supremo, foi um dos primeiros a chegar. “Você é a estrela da festa”, disse um dos presentes. Ao longo da noite, Moraes evitou conversas longas. “Temos muito trabalho pela frente”, disse o ministro que conduz o processo sobre a tentativa de golpe de 8 de janeiro.
Em viagem a Portugal, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva telefonou mais cedo para dar os parabéns. Nas eleições passadas, Sarney declarou voto no petista. Quem também ligou foi o presidente português, Marcelo Rebello, segundo reportagem do Correio Braziliense.
Não faltaram representantes do Planalto na festa. O presidente interino Geraldo Alckmin e a mulher, Lu, demonstraram estar à vontade no aniversário. “Como disse Jorge Amado, no período do presidente Sarney a democracia foi plena”, comentou. “Mais de trinta anos depois, a democracia esteve em risco, como foi dia 8 de janeiro”, observou. “A resposta veio dos três poderes e dos três níveis de governo, todos foram firmes.”
Alckmin avaliou que a instalação de uma CPI para investigar o movimento golpista de 8 janeiro é “indiferente” à programação de votações do governo. “Nenhum problema”, disse. Sobre a agenda prioritária, defendeu a proposta de reforma tributária e o arcabouço fiscal. “São os dois projetos importantes para a retomada econômica.”
O ex-presidente Michel Temer foi outro cortejado com pedidos para tirar fotos e conversas sobre seu governo. “Sarney é uma referência de moderação”, disse Temer. “Sou repetitivo: o país precisa de reconciliação”. Uma pessoa perguntou se havia chance de uma reaproximação com o atual presidente. Ao pé do ouvido dela, Temer disse: “Ele (Lula) só me chama de golpista”, disse num tom de brincadeira e de queixa.
Roseana Sarney, filha do ex-presidente e agora deputada, encomendou um bolo e bandejas de doces. A mesa ficou intacta quase toda a noite. Foram servidos uísque Old Parr 12 anos, vinho Bom Juiz, do Alentejo, safra 2020, espumante Freixenet, refrigerantes e sucos. O irmão de Roseana, o ex-ministro do Meio Ambiente, Zequinha Sarney, contou que a família resolver fazer a festa ao perceber que o pai estava tranquilo, sem ansiedade. “Depois dos 90 anos, é preciso comemorar sempre.”
Antigo adversário da família Sarney no Maranhão, o ministro da Justiça, Flávio Dino, brincou quando ouviu o comentário irônico de que faria uma foto “histórica” ao cumprimentar o ex-presidente: “Já são tantas fotos históricas”. Ao lado do ex-presidente, o ministro disse que festa grande seria a dos 100 anos.
O ministro desfilou com o interino do GSI, o jornalista Ricardo Cappelli, à tiracolo. “Cappelli é um general”, disse um deputado maranhense para agradar. “Vocês estão sendo bravos”, afirmou outro. “Ele ficará apenas uma, ou duas semanas. Vai entrar um general mesmo no posto”, ponderou minutos depois o ministro da Justiça à reportagem.
Flávio Dino deu abraços de grande amigo em Ricardo Lewandowski, ministro recém aposentado do Supremo e o presidente do Tribunal de Contas da União, Bruno Dantas, cotado a assumir a vaga. “Vou conversar com o (Aloizio) Mercadante para a gente organizar uma homenagem ao senhor”, disse Dino a Lewandowski. “Toca o hino nacional que já está bom”, respondeu, bem-humorado o ex-magistrado. Mais no ouvido de Dino, o ex-magistrado comentou: “Tem que ter peito de aço para enfrentar os caras”, referindo-se, claro, aos bolsonaristas.
A festa de Sarney mostrou uma cidade que sempre viveu a política 24 horas e, após o isolamento e o advento das redes sociais, viu o tempo da política da conversa por excelência se esvair. Ao longo da noite, os diálogos quase sempre começavam com um cumprimento e terminavam com sugestões de encontros nos dias seguintes, sem nada marcado.
A resistência ao nome do advogado Cristiano Zanin na vaga aberta por Lewandowski era um assunto na pauta da noite. “A indicação não é 100%, mas ele é um importante nome”, disse um ministro do governo. O senador Paulo Rocha, do PT do Pará, comentou que Lula se divide entre a gratidão pelo que Zanin fez na Lava Jato e a política. “O presidente vai saber trabalhar essa questão”, disse. A aposta é que o advogado ficará com a vaga por um fator: não há no momento outro que Lula confie mais.
Do PT estavam também a presidente da legenda, Gleise Hoffmann, o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, e o senador Jaques Wagner. A influência da primeira-dama Janja da Silva era assunto que poucos arriscavam a comentar. “Ela tem que se conter”, disse um aliado influente do presidente. “Tá demais”, afirmou outro.
Um dos primeiros a deixar a festa, o ministro Juscelino Filho, das Comunicações, recebeu tapinhas nas costas e ouviu quase sempre a palavra “firmeza” – em vez de incentivo, o termo tinha o tom do constrangimento. O Estadão revelou que Juscelino mandou verbas para construir uma estrada que corta fazendas da família e usou avião da FAB e diárias numa viagem para participar de leilões de cavalos. As denúncias o fizeram alvo da comissão de ética pública e levaram Lula ameaçar demiti-lo. Ficou por pressão do partido, mas atua escanteado pelo chefe.
O ministro Dias Toffoli, do Supremo, deixou a festa por volta de 21h30. Ainda viu a chegada do presidente da Câmara, Arthur Lira. Se abraçaram e marcaram uma conversa mais demorada para os próximos dias. Roseana fez as honras da casa para o parlamentar alagoano. Lira procurou ficar perto de Sarney. “Desculpe a hora, presidente”, disse.
Sabedoria
A trajetória de um político que chefiou o País após 21 anos de regime de exceção e o Senado em momentos de crise política foi lembrada pelo atual presidente da Câmara. “Ele representou e representa muito a sabedoria da política e das conquistas que o Brasil teve”, afirmou Lira. “Todo mundo veio prazerosamente dar um abraço nele.”
À reportagem, o deputado disse que depois de uma eleição e o início de governo e legislativo “tumultuados” as “coisas” vão entrando nos eixos. “Algumas pedras vão se acomodando. Outras teimam, e precisam ser polidas”, disse. Polidas ou punidas? “Po-li-das”, respondeu Lira. “Você faz um polimento das pedras. Há instrumentos legislativos e jurídicos para isso”, ressaltou. “Quem se desvirtua tem ao seu encontro um encaminhando, como o Conselho de Ética que vai se debruçar sobre os exageros. Maior que os problema internos são os problemas externos.”
Lira defendeu uma “pacificada” no País. “Alguns temas precisam ser menos tumultuados. A gente precisa tratar mais abertamente de situações com parcimônia para que se chegue tranquilamente a votações de matérias importantes”, afirmou. “É o que todo mundo quer: um ambiente econômico mais previsível, menos complexo, simplificado.”
Ele avaliou que a instalação de uma CPI para investigar o 8 de janeiro não vai atrapalhar a agenda. “Todos precisam ajudar a estabilizar o movimento político”, disse, ressaltando que não mandava recado apenas para o governo. “Não é só o Planalto. A polarização não está lá dentro, está em todo o ambiente.”
Mais longevo dos líderes políticos brasileiros, Sarney fez questão de ficar à porta da residência para cumprimentar todos que chegavam e saíam. Com o passar das horas, alguém trouxe uma cadeira para ele e outra para a ex-primeira dama Marly, de 90 anos, que não se afastou do marido. “O presidente está bem, mas está preocupado com dona Marly”, comentou um aliado próximo. Ela enfrentou uma série de problemas de saúde, ainda assim, na noite procurou ajudar Sarney na tarefa de conversar e cumprimentar os convidados, do baixo clero e da alta cúpula da política.
Na condição de vice-presidente eleito de forma indireta pelo Colégio Eleitoral, Sarney assumiu provisoriamente o poder em 1985, quando o titular, Tancredo Neves, foi internado na véspera da posse. Com a morte de Tancredo, ele ficou cinco anos no Planalto. Ainda voltou a mostrar influência ao assumir o Senado, entre 2009 e 2013.
Quase quatro décadas após o fim da ditadura militar, Sarney chega aos 93 para acompanhar, agora como referência de uma classe política acossada, outro momento de ameaças ao processo democrático. É o assunto da vida dele. “Na realidade, a transição democrática brasileira, como disse o brasilianista Ronald Schneider, foi a mais a bem sucedida do mundo”, comentou. Mas o ex-presidente diz não ver riscos. “Ninguém tira. A democracia não vai embora, veio para ficar, não sai nunca mais.”
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