O agricultor Wellington de Souza Rodrigues, de 19 anos, mora no município de Jaraguá (GO), a 121 quilômetros de Goiânia. Desde criança, vive em uma pequena propriedade rural, na localidade de Córrego Grande, onde se sustenta cuidando do gado. O jovem ganha R$ 2 mil por mês, tem carteira assinada, já não mora mais com a família. A jornada dele começa às 4 da manhã.
Wellington abandonou a escola que frequentava, também em Córrego Grande, no primeiro ano do ensino médio. Tudo o que sabe, aprendeu praticando. O lugar não oferece qualificação nem novas perspectivas para jovens do campo como ele, e muitos vão embora para Anápolis (GO) ou para a capital do Estado.
Com 45 mil habitantes, a prefeitura de Jaraguá recebeu R$ 73,15 milhões do governo federal no ano passado. O valor equivale a R$ 1.618 por habitante, maior do que o recebido pela capital de Goiás, Goiânia (R$ 738), no mesmo período.
Toda a arrecadação do município, incluindo recursos próprios e transferências do governo estadual, somou R$ 116,4 milhões e 61% dessa quantia foi usada no pagamento da folha de pessoal. Somente o restante foi gasto com o funcionamento das escolas, dos postos de saúde e investimentos.
Jaraguá faz parte dos bolsões de desigualdade do Brasil. A renda média da população da cidade é de R$ 392,61, valor abaixo da linha da pobreza. Na lista dos 5.570 municípios brasileiros, ocupa o 2.871º lugar.
A situação reflete a realidade de um país que, mesmo com tanto dinheiro, ainda é um dos mais desiguais do mundo.
Durante uma semana, o Estadão percorreu 2.312 quilômetros, passando por 15 cidades do Distrito Federal, Goiás e Tocantins, onde a reportagem encontrou muitos moradores como Wellington. Esses municípios formam um entroncamento de grandes investimentos feitos nas últimas décadas, no centro do Brasil, que decorreram dos projetos de integração nacional e expansão da fronteira agrícola, especialmente a partir da década de 70.
Grandes obras atravessam a região, como a rodovia Belém-Brasília, com o trecho entre Tocantins e Goiás recentemente privatizado, e a Ferrovia Norte-Sul, que vai do Maranhão a São Paulo.
No Brasil, 3.132 cidades (56% do total) têm uma população com renda média abaixo da linha da pobreza, de R$ 497 mensais, de acordo com levantamento feito pelo Estadão com dados publicados pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). A estimativa é de que 62,9 milhões de brasileiros vivam em situação de pobreza.
Os dados revelam também as ilhas de prosperidade: 796 municípios (14% do total) são privilegiados com uma renda média acima de R$ 1.024 mensais. Foi onde grandes investimentos do passado se concentraram e o desenvolvimento chegou. Os números são de 2020, os mais recentes, e uniram informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Imposto de Renda.
Transferências a municípios batem recorde
No mesmo ano de 2020, as transferências federais para municípios atingiram o recorde de R$ 322 bilhões. Trata-se de um crescimento de 50% em uma década. Nunca se repassou tanto dinheiro público para o interior do País. Ao longo dos anos, porém, o governo reduziu a quantidade de grandes obras e priorizou os repasses diretos de dinheiro para as prefeituras, que ficam livres para decidir onde gastar.
E por que Jaraguá, com tanto dinheiro, continua tendo só 15,6% da população com esgoto tratado e 3,5% das ruas com asfalto? Os dados citados são do próprio IBGE e refletem a realidade de mais da metade dos municípios brasileiros.
No diagnóstico do economista Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central, o foco está errado. “Muita gente no Brasil acredita que, pondo o governo para investir, isso vai reduzir a desigualdade. Ledo engano. Muitas vezes, os investimentos acabam gerando desigualdade e beneficiando famílias ricas. Por exemplo: o governo pega um dinheiro que poderia aplicar em escola e constrói aeroporto”, afirmou.
A chave para enfrentar a desigualdade, segundo Loyola, é investimento na qualidade da educação e no gerenciamento do ensino. “O grande problema não foi atacado”, observou Loyola.
Em 2020, o Brasil aparecia como o terceiro mais desigual entre 50 países pesquisados, de acordo com o Banco Mundial. No ano seguinte, quando a comparação foi feita com 18 países, o Brasil ficou em primeiro lugar nesse ranking.
“O Brasil tem gasto recursos em saúde, educação e saneamento, mas a grande falha é como transformar o investimento em capital humano, nas pessoas, numa economia mais forte e inclusiva. A busca por retorno social está comprometida”, destacou o economista Macelo Neri, um dos maiores especialistas de renda e desigualdade no Brasil.
O economista da Fundação Getúlio Vargas (FGV) aponta a reforma tributária como um caminho. “O Bolsa Família teve uma contribuição na redução da desigualdade, mas o efeito deletério dos impostos sobre o consumo foi tão forte quanto a transferência de renda. Tudo que o Bolsa Família fez os impostos desfizeram”, disse ele.
No traçado da ferrovia Norte-Sul, o desenvolvimento se concentrou nas capitais e poucas cidades, como Anápolis (GO), Rio Verde (GO) e Porto Nacional (TO), com rendas médias próximas ou até superiores a R$ 1 mil por mês. E ficou por aí. Fora desse eixo, municípios como Jaraguá continuam pobres e neles faltam moradia e equipamentos públicos.
Na prefeitura, a justificativa é de que o custo dos servidores e dos materiais aumentou, deixando o município sem dinheiro sobrando. “Quando eu coloco energia, água, salário, papel, gasolina, parafuso, merenda, arroz, feijão, piso de professor, piso de enfermagem, o custo aumentou três vezes o que aumentou o dinheiro. É uma bola de neve”, afirma o prefeito de Jaraguá, Paulo Vitor Avelar (União).
Desigualdade é desafio mesmo em cidades mais ricas
Mesmo dentro de um município próspero, o fantasma da desigualdade aparece. Anápolis cresceu com a criação de empregos na sua base aérea alinhada às indústrias, principalmente do polo farmacêutico. Só num projeto recente de aeronaves de caça, desenvolvido pela Força Área Brasileira (FAB), o governo gasta mais de R$ 1 bilhão por ano. De acordo com o IBGE, 31,9% da população de Anápolis ainda vive com uma renda mensal de até meio salário mínimo.
Do lado da base área, fica o bairro que leva o nome do pai da aviação, Santos Dumont. Moradores reivindicavam há 20 anos um posto de saúde na localidade, que só foi inaugurado em março de 2023. Ainda assim, a unidade não tem médico fixo. Uma consulta chega a demorar um mês para ser agendada e mais ainda para marcar um exame, de acordo com relatos da população.
Em frente ao posto de saúde, do outro lado da rua, uma família montou um barraco para morar na calçada. A moradia foi feita com pedaços de madeira, telha e lona. Em volta, um jardim bem cuidado de pequenas plantas e flores em vasos.
Aldemar Marques Pereira, 49 anos, trabalha como motorista, ajudante de serviços gerais e pedreiro. A mulher, Joelma Gonçalves Silva, 46 anos, faz serviços domésticos na cidade. Eles moravam em uma casa, mas tiveram de sair porque ficaram sem dinheiro para pagar os R$ 500 de aluguel mensal.
O motorista se machucou em um acidente e não conseguiu mais dirigir para complementar a renda, além de ficar sem recursos para renovar a carteira de habilitação. Para motoristas como ele, que dirige caminhão, o custo para renovar a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) em Goiás é de R$ 275,70.
O casal faz serviços informais que arruma na região e junta R$ 200 por mês para se alimentar e manter como pode a área onde vive. Sem água encanada, banheiro adequado e energia elétrica, os dois buscam água em um vizinho para beber, preparar alimentos e tomar banho. Os baldes com água ficam do lado de fora.
Quando falam das necessidades mais urgentes, citam um exame de endoscopia e óculos de grau para Aldemar, água potável e energia elétrica para ver televisão. Além disso, querem um socorro para ter direito a ficar ali e regularizar o imóvel. “A terra é do povo e nós não podemos ficar aqui?”, indagou Aldemar.
No próximo domingo, 24, o Estadão publica a segunda reportagem da série “Desigualdade - O Brasil tem jeito?” e vai mostrar para onde está indo o dinheiro recebido pelos municípios.
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