BRASÍLIA - Especialistas ouvidos pelo Estadão divergem sobre os desdobramentos criminais da declaração do deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) chamando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de “ladrão”. Nesta sexta-feira, 26, a Procuradoria-Geral da República (PGR) denunciou o deputado e considerou que ele teve a “clara intenção de macular a honra” do presidente.
O caso em questão ocorreu durante um evento da Organização das Nações Unidas (ONU) que ocorreu em Nova York em novembro do ano passado. Em seu discurso, Nikolas chamou Lula de “ladrão” que “deveria estar preso”. O mineiro também criticou a ativista ambiental da Suécia Greta Thunberg e o ator Leonardo DiCaprio, alegando que ambos apoiaram a candidatura do petista em 2022.
“Isso se encaixa perfeitamente com Greta e Leonardo DiCaprio, por exemplo, que apoiaram o nosso presidente socialista, chamado Lula, um ladrão que deveria estar na prisão”, afirmou o deputado federal no evento da ONU.
Nikolas usou as redes sociais para criticar a denúncia da PGR. Segundo o deputado, a decisão mostra que o trabalho dele como político de oposição “está incomodando”. O parlamentar também afirmou que foi para a ONU como deputado federal em missão especial e, logo, deve ter a imunidade parlamentar preservada.
“Mais um dia do cimento jogando o pedreiro na parede. Fui denunciado pela PGR por chamar o Lula de ladrão na ONU. Somente a título de esclarecimento: fui convidado como deputado federal com missão oficial autorizada pelo Presidente da Câmara dos Deputados, ou seja, fui representando a Câmara. Se a minha fala não estiver tutelada pela imunidade parlamentar, melhor revogar logo o art. 53 da Constituição. Porém, não esmorecerei, continuarei fazendo meu trabalho que, pelo visto, está incomodando”, afirmou.
Outros políticos de oposição ao governo Lula se posicionaram contra a denúncia da PGR. O ex-deputado Deltan Dallagnol (Novo-PR) disse que a Constituição garante aos políticos o direito de não serem condenados por suas opiniões e ideias. “Rasguem suas Constituições. São só papel, não servem mais para nada”, afirmou.
A deputada Júlia Zanatta (PL-SC) acusou o governo federal de promover uma perseguição contra o mineiro. “Lula mente a todo momento e acusa todos de tudo e agora vem querer calar um deputado? Ele é um antidemocrático e perseguidor!”, disse a catarinense.
De acordo com o vice-procurador-geral da República, Hindemburgo Chateaubriand, a fala de Nikolas ultrapassou a imunidade garantida pela Constituição, pois houve uma “intenção clara” de ferir a honra de Lula e não teve relação com o mandato parlamentar.
A imunidade parlamentar é assegurada pelo artigo nº53 da Constituição Federal, que estipula que os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. Porém, em 2016, a ministra aposentada do STF Rosa Weber abriu um precedente ao entender que o direito não se estende a casos onde os políticos usam a regalia para “ofensas pessoais, achincalhamento ou libertinagem da fala”.
“A verbalização da representação parlamentar não contempla ofensas pessoais, achincalhamento ou libertinagem da fala. Placita, contudo, modelo de expressão menos protocolar, ou mesmo desabrido, via manifestações muitas vezes ácidas, jocosas, mordazes, ou até impiedosas, em que o vernáculo contundente”, entendeu Rosa Weber.
Especialistas divergem se Nikolas ultrapassou limite da imunidade parlamentar
O professor de Direito Constitucional Fabio Tavares Sobreira explica que, apesar do tom adotado por Nikolas no discurso da ONU, a imunidade parlamentar deve ser preservada para garantir o direito do deputado de criticar o Poder Executivo. Segundo Sobreira, a declaração do mineiro foi uma opinião dada sobre um debate político e, por isso, não pode acarretar uma condenação judicial.
“Ao chamar o presidente de ‘ladrão’, o deputado estava exercendo seu direito constitucional de expressar uma opinião, ainda que contundente e polêmica, sobre a conduta do chefe do Executivo. Essa expressão, embora dura, insere-se no contexto do debate político e é uma manifestação do pensamento crítico que um representante do povo deve ter o direito de proferir sem o risco de ser perseguido judicialmente”, afirmou.
Alberto Rollo, especialista em Direito Eleitoral, diverge e considera que o precedente do STF impede que os parlamentares utilizem da imunidade parlamentar para cometer crimes contra a honra. Segundo Rollo, o direito concedido pela Constituição existe para garantir que os deputados e senadores não sofram impedimentos para cobrar e fiscalizar os poderes públicos.
“Você pode ser contra o aborto, contra pessoas do mesmo sexo. Você foi eleito representando essas bandeiras. Então, você tem todo o direito de defender essas bandeiras. Agora, o que você não pode é agredir, não pode é xingar. Você não pode desrespeitar quem pensa contra as suas ideias”, avaliou o especialista.
Felippe Mendonça, doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP), acredita que a fala de Nikolas não ultrapassa a imunidade parlamentar nem a liberdade de expressão de um cidadão comum. Segundo o especialista, uma eventual condenação de Nikolas poderia abrir um precedente que impediria opiniões contra outros políticos, como o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
“A fala não ultrapassa nem mesmo a liberdade de expressão de qualquer pessoa, quanto mais a imunidade parlamentar. Milhões de pessoas dentro da sociedade consideram isso e repetem essa fala. Proibir essa fala dele seria um precedente que impediria qualquer pessoa de chamar Bolsonaro de genocida, acho que ninguém quer isso”, afirmou Mendonça.
Para Thiago Pádua, professor de Direito Constitucional, Nikolas deverá provar no julgamento realizado pelo STF que não teve a intenção de ferir a honra do presidente. Contra o parlamentar, Pádua observa que a palavra “ladrão” foge do escopo dos termos jocosos incluídos no precedente aberto por Rosa Weber.
“A expressão ‘ladrão’ possui contexto próprio e significado conhecido que não parece ser jocoso, mas sim ofensa à pessoa, que renderá ensejo para que o parlamentar prove sua inocência, pela ausência de dolo, autoria e materialidade”, afirmou.
STF abriu inquérito para apurar declaração de Nikolas em abril
Em abril deste ano, o ministro Luiz Fux do STF abriu um inquérito contra Nikolas após um pedido do Ministério da Justiça. No mês passado, a Polícia Federal (PF) concluiu que o parlamentar cometeu crime de injúria, mas não o indiciou pelo fato de o delito ser considerado de menor potencial ofensivo.
O Código Penal brasileiro estabelece que a pena para crimes contra a honra do presidente da República ou contra pessoas com mais de 60 anos seja aumentada em um terço. Na denúncia enviada pela PGR a Fux, é solicitado o cumprimento desse estatuto com o agravante de o ocorrido ter sido divulgado nas redes sociais.
A PGR propõe que sejam realizadas uma audiência preliminar e uma transação penal, que é uma espécie de acordo feito para o arquivamento do processo. Nikolas terá um prazo de 15 dias para apresentar a sua defesa prévia sobre a denúncia.
Além disso, o Ministério Público quer que as redes sociais X, Instagram, YouTube e TikTok retirem do ar todos os vídeos que contenham a declaração de Nikolas.
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