Caro leitor,
O almirante Antônio Alberto Marinho Nigro comandou o porta-aviões São Paulo quando era capitão de Mar e Guerra. Era então a maior embarcação da esquadra. O militar resolveu se manifestar sem usar patente ou mencionar sua condição de marinheiro. Os desavisados, portanto, não perceberam de quem se tratava
Escreveu o almirante para o jornal O Globo a respeito da informação de que o general Braga Netto fora escolhido como vice na chapa de Jair Bolsonaro por se tratar de uma espécie de seguro contra impeachment. Pela narrativa, caso optasse por um político do Centrão como vice, o presidente ficaria exposto a ser apeado do poder.
O mesmo aconteceu com Hamilton Mourão. Quando começou a se discutir a possibilidade de impeachment de Bolsonaro em 2020, militares próximos do presidente gostavam de dizer: “Ah.. vocês não conhecem o Mourão...” Como se o vice fosse ainda mais difícil de lidar do que o chefe. Mas o problema é que Bolsonaro também não simpatiza com Mourão.
Diz o almirante sobre a manobra: Em essência, o inquilino do Planalto explora uma vulnerabilidade sociopolítica brasileira: a desconfiança entre as elites política e militar. Desconfio que vinha sendo lentamente sobrepujado após a redemocratização. Resultado: perdem a Nação brasileira e a sua Defesa.”
O almirante tem razão. Mas o bolsonarismo mobilizou forças políticas que apostaram no discurso da antipolítica em 2018 e em expressões como “se gritar pega Centrão”, canto entoado por um general palaciano que, depois, incentivou protestos contra o Congresso que terminaram com o presidente da República discursando em frente ao quartel-general do Exército para uma plateia que exigia um golpe de Estado.
A manifestação do almirante aconteceu uma semana antes de o levante do Forte de Copacabana, marco inicial do tenentismo, completar cem anos. Os tenentes reeditavam nas condições dos anos 1920 a ideia do soldado-cidadão, que pode e deve se manifestar politicamente, enquanto a maioria do Exército permaneceu nos quartéis na decisiva década de 1920 para o início do projeto de modernização da Força Terrestre.
Poucos se lembram agora do general Tasso Fragoso, que por sete anos foi chefe do estado maior do Exército, justamente no período das revoltas, mas também durante os anos decisivos da Missão Militar Francesa. Muitos, no entanto, sabem quem é o general Cordeiro de Farias, o tenente rebelde que depois comandaria a artilharia divisionária da Força Expedicionária Brasileira (1945).
Ao retornar da guerra, Cordeiro foi portador do ultimato dos chefes militares para Getúlio Vargas, deposto em 29 de outubro. Foi governador do Rio Grande do Sul e de Pernambuco e ministro de Castelo Branco. Esteve envolvido em todas as revoltas e golpes militares do País, até 1964. Em 1979, o então marechal da reserva concedeu aos jornalistas Villas Boas Correa, Antonio Carlos Pereira e Lourenço Dantas Mota, publicada em 3 de junho de 1979 pelo Estadão.
Há várias lições que o velho marechal expôs aos jornalistas. Primeiro, disse “o tenentismo era mais fantasia que realidade”. A primeira era a aposta na transição democrática. Antigo companheiro do capitão Luiz Carlos Prestes, Cordeiro foi visitar o colega na prisão em 1936, depois do fracasso do levante comunista liderado pelo amigo. Ao vê-lo no cárcere, Prestes disse a Cordeiro: “Amigo meu é aquele que pensa como eu.” O marechal respondeu: “Não discuto seus pontos de vista, mas respeito-os. Mas quero que você também respeite os meus.”
Quarenta anos depois daquela conversa perguntaram ao marechal se Prestes o procurasse então, como ele agiria como em 1936? “Claro, por que não? Na minha vida nunca discriminei um homem que pensasse diferente de mim”. Dizia então ter “entradas” com oposicionistas MDB. O passado rebelde do marechal pode ser mal visto hoje pelos que defendem um Exército profissional e distante da política, onde Cordeiro viveu uma parte importante de sua vida. Um Exército onde não há espaço para indisciplinas de tenentes e muito menos para generais que se eternizavam na ativa. O tenente rebelde virou um general político e, depois, um um marechal conciliador. É este último papel que parece esquecido em Brasília.
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