BRASÍLIA – O esquema da grilagem virtual une engenheiros e grileiros na apropriação ilegal de terras na Amazônia. A inscrição de um imóvel no Cadastro Ambiental Rural (CAR) demanda conhecimento técnico para preenchimento da documentação e para uso de sistemas de projeção cartográfica dos imóveis.
Na terra indígena Ituna-Itatá, no Pará, 42% das fazendas que aparecem sobre a terra indígena foram cadastradas por uma única pessoa, o engenheiro Jorge Luiz Barbosa Corrêa. Ele é um velho conhecido de investigadores no Pará. Foi alvo de inquéritos que apuraram manutenção de trabalhadores em condições análogas à escravidão e atuação de empresas fantasmas ligadas ao esquema de venda de madeira ilegal. Ele nega as acusações.
No início do mês, Corrêa prestou depoimento à Polícia Federal em inquérito, que apura crimes relacionados à grilagem. Localizado pelo Estadão, Corrêa afirma desconhecer a maioria das terras registradas em seu nome. Segundo o engenheiro, alguém usou os dados dele. “Usaram indevidamente meu nome. Vários desses imóveis eu não sei de quem é nem onde fica. Aí eu pergunto para o meu cliente. Ele diz: ‘olha, eu não sei quem fez’. Sinceramente, eu não sei quem fez então.”
Local onde vivem indígenas isolados, a Ituna-Itatá tem 142 mil hectares, uma área correspondente a quase o tamanho da cidade de São Paulo. É um dos casos mais emblemáticos de avanço da grilagem digital. Em fase inicial do processo de homologação, já tem mais de 90% de sua área tomada por fazendas.
Disputa
Em Roraima, o engenheiro agrônomo Idelban Pereira da Silva é responsável por colocar no CAR, entre 2016 e 2022, mais de 6 mil hectares de fazendas que tomam ao menos uma parte do território Pirititi, localizado dentro dos limites do município de Rorainópolis. Quando questionado sobre o fato de as propriedades se sobreporem a uma área que não é privada, ele afirmou não reconhecer a terra indígena. “Na minha visão, as pessoas (donas das fazendas) estão lá desde 2008. A pretensão está em estudo, não existe terra indígena”, alegou.
A versão contradiz os entendimentos oficiais do poder público. Embora ainda não homologada, isto é, demarcada por decreto do presidente da República, existe um processo em andamento e o governo já nomeia a área como terra indígena. Conforme portaria da Funai, somente indígenas e servidores da fundação podem acessar o local.
Idelban foi um dos alvos de uma grande operação da Polícia Federal contra o desmatamento em Roraima, em 2012. A investigação apontou que uma quadrilha de empresários, engenheiros e servidores grilava terras na região de Rorainópolis e forjava documentos para dar aspecto de legalidade à extração criminosa de madeiras da floresta.
Uma interceptação telefônica revelou que Idelban tinha acesso à movimentação de fiscais ambientais e avisava sobre vistorias. Em uma delas, chegou a sugerir a um desmatador que “ou tu quebra a ponte ou dá um jeito do pessoal não ir lá”. O engenheiro chegou a ser condenado a pagamento de multa em 2017, mas a maior parte dos crimes prescreveu.
Uma cozinheira que teve o nome usado por ele no esquema narrou em um processo de 2019 como se deu a abordagem. Corria o ano de 2006 quando o grupo de Ildeban procurou a mulher, que havia prestado serviços a um fazendeiro próximo a ele entre 1991 e 2004. A promessa era a de que ela e o marido poderiam ter um pequeno pedaço de terra para plantar o que quisessem. Bastava entregar alguns documentos e aguardar até que tudo fosse providenciado junto aos órgãos competentes. Interessada em garantir um lote, assinou tudo o que lhe foi pedido, até em cartório.
O terreno não foi repassado e ela acabou presa. Segundo a polícia, a cozinheira sabia do esquema e recebeu R$ 20 mil em troca. Ela, porém, se disse vítima e processou Idelban pelos danos morais que alega ter sofrido com a prisão. A ação judicial não foi à frente por falta de provas e porque as acusações da mulher foram consideradas prescritas.
Índio do Buraco
Por cima dos 8 mil hectares da terra indígena Tanaru, em Rondônia, há mais um flagrante do esquema de garimpo virtual. Cinco imóveis rurais estão registrados no CAR com algum nível de sobreposição à área habitada por um povo que não resistiu ao avanço do gado e da exploração de madeira. Em agosto de 2022, o “Índio do Buraco” foi encontrado morto em sua palhoça. Era o último sobrevivente do povo tanaru, duramente massacrado nos anos 1990.
Em virtude da vida em isolamento extremo dentro da mata, pouco se soube sobre os costumes do tanaru, à exceção do hábito de escavar buracos. Mas o último tanaru ajudou a manter de pé uma parte da floresta durante as mais de duas décadas em que viveu sozinho na mata. A presença dele levou a Funai a restringir o local a não indígenas de 2012 até 2025, para que ele pudesse subsistir da maneira que preferia, sem contato com o restante da sociedade.
Apesar das vedações, fazendas foram sendo registradas no CAR. As inscrições mais recentes são de 2020 e 2021. E pouco depois que o último tanaru faleceu, fazendeiros que afirmam serem donos da terra pediram a derrubada da portaria que restringiu o loteamento sob a justificativa de que a medida perdeu o sentido.
Preservação
A investida dos ruralistas é monitorada pelo Ministério Público Federal (MPF). Nos últimos anos, o órgão atuou na proteção ao último tanaru com medidas judiciais e extrajudiciais que visavam manter invasores afastados. Uma nova ação civil pede que a terra indígena tenha destinação socioambiental e seja demarcada, apesar da morte do último indivíduo.
“O argumento jurídico para demarcar o território é a sua ancestralidade, a tradição da sua ocupação, a sua importância histórica, a função para a preservação do ambiente, das práticas tradicionais do tanaru, da biodiversidade, dentre outros”, comentou o procurador Leonardo Caberlon, que atua no caso.
A indigenista Ivaneide Bandeira atuou por anos no monitoramento da área onde o “Índio do Buraco” e em ações para evitar invasões. Com quatro décadas de dedicação às defesa de povos indígenas, ela não tem dúvida que o surgimento de fazendas sacramentou o destino dos tanaru. “O avanço das fazendas em cima da terra indígena massacrou, fez desaparecer um povo, ao ponto de se ter um único sobrevivente”, disse ela ao Estadão.
Agora, Ivaneide espera que o corpo do “Índio do Buraco”, sepultado no local onde foi encontrado depois de um longo um impasse judicial, sirva para manter a floresta de pé, assim como fez em vida. “A minha visão é a de que aquela área precisa ser transformada em um memorial, um parque indígena. É a memória de um povo massacrado”, pontuou.
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