Novo ‘penduricalho’ no MP é ‘incentivo à incompetência’, diz especialista em gestão pública

Diretor do Centro de Liderança Pública, Tadeu Barros afirma que adendo a salários é anomalia do Poder Judiciário, que ‘pode legislar em causa própria’; ‘Estadão’ revelou adicional por ‘acúmulo de processos’ para procuradores e promotores

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Foto do author Davi Medeiros
Atualização:

A criação de “penduricalhos” para aumentar a remuneração da elite do funcionalismo público, como o que engorda em até 33% o salário dos procuradores e promotores do Ministério Público, é fruto de uma anomalia do sistema de Justiça brasileiro, aponta o diretor-presidente do Centro de Liderança Pública, Tadeu Barros. No caso mais recente, em que a justificativa para o pagamento adicional é o acúmulo de trabalho, conforme mostrou o Estadão, Barros afirma que o dispositivo é um incentivo à “incompetência”, não à produtividade.

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Segundo o diretor-presidente do CLP, que já foi secretário de Planejamento do governo de Alagoas, esse tipo de instrumento do qual se vale o Judiciário brasileiro é indesejável sob três perspectivas. A primeira delas é descrita por ele como moral, considerando que o País retornou recentemente ao mapa mundial da fome e o número de desempregados já supera 10 milhões de pessoas. A segunda é fiscal: estudo do CLP mostra que o custo anual dos “penduricalhos” em todo o Judiciário gira em torno de R$ 2,6 bilhões.

Esse valor diz respeito a mecanismos de remuneração extraordinária que acabam criando “supersalários”, isto é, contra-cheques que, na prática, superam o teto de vencimentos no funcionalismo público, determinados pela remuneração de ministro do Supremo Tribunal Federal, de R$ 39 mil.

Barros ainda destaca a perspectiva social, uma vez que a soma dos “penduricalhos” chega a superar as despesas executadas do Orçamento da União até de ministérios, como o do Meio Ambiente (em 2021, as despesas da Pasta foram de R$ 2,38 bilhões, segundo o Portal da Transparência).

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Resolução premia a falta de produtividade, aponta diretor-presidente do Centro de Liderança Pública, Tadeu Barros. Foto: Gabriel Diniz/Divulgação CLP

De autoria do deputado Rubens Bueno (Cidadania-PR), um projeto protocolado há seis anos no Congresso busca limitar o pagamento de verbas indenizatórias no Judiciário e, assim, barrar a previsão de supersalários. A proposta está parada há cerca de um ano na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, presidida pelo senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), e aguarda a indicação de um relator.

Leia os principais trechos da entrevista:

A justificativa do Conselho Nacional do Ministério Público para autorizar a gratificação é ‘acúmulo de trabalho’. Esse é um argumento válido?

Você vai ser pago pela sua incompetência, pelo atraso do seu trabalho? É como dizer: “Você vai ser premiado porque atrasou e está com processos acumulados”. É um absurdo. É importante contextualizar com o momento em que estamos agora, começando a sair de uma pandemia, em que vários gastos extraordinários do Estado tiveram de ser feitos e de forma emergencial, sem se planejar. Nesse contexto de gastos inesperados, falamos em mais de 10 milhões de brasileiros desempregados, em um cenário mundial com guerra, inflação norte-americana em alta, um momento extremamente sensível. Em um contexto como este, eles falam em um novo auxílio quase dez vezes maior que o salário mínimo porque estão com processos atrasados. O pessoal do Ministério Público já ganha o teto, estamos falando de mais de R$ 30 mil, e cria mais um subterfúgio por meio de penduricalho.

É como um incentivo à não produtividade?

Sim. São incentivos perversos e não existe qualquer tipo de gatilho contrário. É um absurdo.

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Por quê?

Toca em três pontos absurdos: Moralidade, questão fiscal e questão social. Moralidade é por isso: O trabalhador que recebe um salário mínimo precisa de quase um ano para ganhar um auxílio pago por processos atrasados. Isso para pessoas que já ganham R$ 39 mil (teto do funcionalismo).

O CLP já fez uma nota técnica estimando o custo anual desses penduricalhos em torno de R$ 2,6 bilhões. Esse, do CNMP, é mais um para engrossar esse valor. R$ 2,6 bilhões é mais que o orçamento anual do Ministério do Meio Ambiente. No momento em que a gente fala sobre o quanto a agenda ambiental é importante a nível mundial, vamos gastar mais que o previsto a essa pasta com uma parcela mínima do funcionalismo público, uma minoria, uma elite que já ganha muito bem. Essa é a questão fiscal.

Isso cai no lado social. Esse dinheiro poderia ser melhor aproveitado em políticas públicas de que o nosso País precisa, como saúde, educação, meio ambiente.

Por que essa categoria do serviço público dispõe de meios para aumentar o próprio salário? Não causa estranhamento?

Não só é estranho como bizarro. É uma anomalia a capacidade do Judiciário de legislar em causa própria e não haver mecanismos de controle em relação a isso. O trabalho da imprensa e do terceiro setor é importante nesse momento para conseguir descortinar esses absurdos. Para se ter uma ideia, o projeto de lei para acabar com penduricalhos no setor público é de 2016. Está há seis anos no congresso. Aí vem uma PEC Kamikaze e é aprovada em duas semanas, para dar tempo de gastar absurdos a três meses do pleito eleitoral. (O projeto sobre) supersalários está há seis anos e não se consegue aprovar, o que mostra o quanto as coisas são demoradas quando eles querem emperrar.

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Por que projetos como esse, de Rubens Bueno, são tão difíceis de serem aprovados?

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São vários interesses por detrás dos bastidores. Existe o grande poder do Judiciário. Nós vemos várias amarras do Legislativo em relação ao Judiciário. Esses “rabos presos” são tão grandes que a aprovação do projeto na Câmara foi feita no apagar das luzes para não repercutir tanto e não mostrar aqueles parlamentares que bateram no peito contra os supersalários. O Davi Alcolumbre está sentado há um ano em cima do projeto de Lei. Hoje, temos poucos parlamentares que falam que isso é um absurdo. Eles têm receio de potenciais ações do Judiciário sobre a gestão deles.

Que ações, por exemplo?

Sobre emendas parlamentares, por exemplo. O Judiciário tem o poder de levantar questões obscuras, como a respeito do orçamento secreto. Não estou dizendo que é errado levantar essas questões. Mas começa a virar conchavo, como: “Vamos deixar o Judiciário ter os benefícios dele para que ele não aponte o dedo em algumas coisas que estamos fazendo aqui. Isso é falta de transparência, o que a gente precisa é de transparência no gasto público.

Além do projeto que está parado na CCJ, há outra maneira de barrar essas práticas?

Com constrangimento e visibilidade na imprensa, unindo forças e jogando no ventilador o quão absurdas são as situações colocadas. É preciso criar essa cultura cívica no País. O CLP fez duas ações ao longo do último ano para trazer essa educação cívica. Entregamos uma petição com mais de 300 mil assinaturas para os parlamentares. Eles querem voto, então precisamos mostrar o que quer a população. Outro ponto é esclarecer. Criamos uma calculadora para mostrar quanto tempo um cidadão comum precisa para ganhar o mesmo que um servidor da elite ganha. Alguns profissionais teriam de ter nascido no descobrimento do Brasil para conseguir chegar ao ganho dessa casta do funcionalismo.

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E pelo lado institucional?

Pelo lado institucional, também pressionar o parlamentar. Ele pode segurar o projeto. Quando tem interesse, eles seguram. (É possível)fazer com que eles se sintam pressionados e travem a pauta. Institucionalmente, eles têm a possibilidade de vetar e rever redações.

A resolução do CNMP precisa ser validada no Congresso?

Nesse caso, o Congresso Nacional não precisa validar o projeto. Trata-se de uma recomendação do CNMP de 26 de abril desse ano e que só foi publicada agora, nos moldes de um ato do CNJ de 2020. A recomendação vale a partir da data da publicação do ato, mas por ser uma recomendação, dependerá da definição em cada estado.

Além deste, que outros privilégios existem?

Quinquênio, que é a pessoa receber um porcentual a mais de salário simplesmente por estar trabalhando há um determinado tempo. Licença premium, aumentos retroativos, férias acima de 30 dias, adicional de tempo de serviço, parcela indenizatória não prevista, redução de jornada de trabalho sem perda de remuneração. Eles variam para cada estado, então também pode haver auxílio-paletó, auxílio-internet, auxílio-moradia. Todos esses podem levar a remuneração a ultrapassar o teto.

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Como isso aprofunda a desigualdade social?

Estamos falando de uma diferença salarial de um teto de R$ 39 mil contra grande parte de assalariados no País que ganham R$ 1.200, o que por si só já é 30 vezes uma desigualdade colocada em poder de compra. Temos, hoje, um sistema tributário injusto, que não cobra proporcionalmente. Agora, mais um penduricalho de R$ 11 mil. Que brasileiro hoje ganha R$ 11 mil? Não estamos falando nem do salário, e sim de um adicional de 11 mil. Salta aos olhos o absurdo que é a diferença e a desproporção.

Importante frisar que estamos falando de 0,23% dos servidores. Não é o servidor público em geral. Temos professores, profissionais de saúde que no momento da pandemia foram heróis e ganham muito pouco. Isso tem de ficar claro porque muita gente coloca que o funcionalismo público nada de braçada, e não é verdade. É uma casta, uma elite que já ganha muito bem, muito acima da média salarial.

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