O inimigo brasileiro de Elon Musk está salvando ou prejudicando a democracia?

O Supremo Tribunal do Brasil expandiu seu poder para proteger a democracia. Mas alguns se perguntam se, agora, a Corte representa uma ameaça

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Por Jack Nicas (The New York Times)
Atualização:

O deputado federal Daniel Silveira estava furioso. Ele acreditava que a Suprema Corte do Brasil estava perseguindo os conservadores e silenciando-os nas mídias sociais e queria fazer algo a respeito.

Então, ele se sentou em seu sofá e começou a gravar. “Quantas vezes imaginei vocês sendo espancados na rua”, disse ele em uma diatribe de 19 minutos contra os juízes da Suprema Corte, com músculos salientes em sua camiseta justa. Ele publicou o vídeo no YouTube em fevereiro de 2021, acrescentando: “Vou dizer o que eu quiser aqui”.

O edifício-sede do Supremo Tribunal Federal, em Brasília Foto: Divulgação/STF

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Um juiz da Suprema Corte brasileira imediatamente ordenou a prisão do parlamentar de extrema direita. Um ano depois, 10 dos 11 juízes do tribunal o condenaram e o sentenciaram a quase nove anos de prisão por ameaçá-los.

Jair Bolsonaro, presidente do Brasil na época, perdoou Silveira, mas o Supremo Tribunal Federal rejeitou a medida. Hoje, Silveira permanece na prisão. Ele não pode recorrer da decisão da Suprema Corte.

O caso de Silveira faz parte de uma crise institucional crescente no Brasil.

Expansão do poder do STF

Nos últimos cinco anos, a Suprema Corte do país expandiu seu poder para realizar uma ampla campanha para proteger as instituições brasileiras de ataques, muitos deles on-line.

Para a esquerda brasileira, a ofensiva ajudou a resgatar a democracia do Brasil. Para a direita, ela transformou o tribunal em uma ameaça à própria democracia.

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Pouco depois de Bolsonaro se tornar presidente em 2019, o Supremo Tribunal Federal iniciou sua campanha com uma ação altamente incomum: concedeu a si mesmo a autoridade para abrir uma investigação criminal sobre ataques contra o tribunal. Ele a chamou de inquérito sobre fake news.

Isso levou a uma série de investigações conduzidas por um único juiz, Alexandre de Moraes.

As investigações tiveram como alvo operadores de extrema direita que pediram um golpe militar depois que Bolsonaro perdeu a Presidência em 2022, ajudando a proteger a transferência de poder.

O juiz Moraes também assumiu novos poderes para ordenar batidas policiais contra pessoas que simplesmente criticaram o tribunal na internet, forçar organizações de notícias a retirar artigos e ordenar que procuradores parassem de investigar outro juiz e sua esposa.

O tribunal também o nomeou como uma espécie de xerife da internet brasileira. Ele fez com que as empresas de tecnologia silenciassem centenas de pessoas nas mídias sociais e bloqueou o X de Elon Musk quando este não estava em conformidade com as regulamentações.

A maioria dos outros 10 juízes apoiou formalmente suas decisões.

Agora, dois anos após o tumulto da última eleição e cinco anos desde que o tribunal concedeu a si mesmo os novos poderes, ele tem se mostrado relutante em abrir mão deles.

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O ministro Alexandre de Moraes em julgamento no STF no início de outubro Foto: Wilton Júnior/Estadão

“Se não fosse por essa investigação, a democracia no Brasil teria entrado em colapso”, disse o ministro Dias Toffoli, 56 anos, que criou o inquérito sobre fake news e nomeou o ministro Moraes para dirigi-lo.

O presidente do tribunal, Luís Roberto Barroso, 66 anos, disse que impor os padrões de outras nações ao Brasil era injusto. Enquanto a Constituição dos Estados Unidos protege até mesmo o discurso de ódio nos termos da Primeira Emenda, por exemplo, o Brasil não o faz. “Os países têm circunstâncias diferentes”, disse ele, ‘e uma democracia jovem como o Brasil precisa se proteger de riscos reais”.

Ele acrescentou que “há um fim à vista” para as investigações.

Moraes x Musk

Com seus novos poderes, a Suprema Corte do Brasil tornou-se um dos tribunais superiores mais poderosos do mundo, disse Tom Ginsburg, professor de direito constitucional comparado da Universidade de Chicago, que acompanha tribunais em todo o mundo.

“Mesmo que algumas das decisões possam ser boas e outras façam sentido, muitos as consideram um verdadeiro exagero que está tendo um efeito inibidor sobre o discurso no Brasil”, disse ele. “Em uma democracia, é preciso ser capaz de criticar todas as instituições governamentais.”

A agressividade do tribunal está agora atraindo atenção global, com a ajuda de Elon Musk.

O juiz Moraes, 55 anos, ordenou que as redes sociais bloqueassem pelo menos 340 contas no Brasil desde 2020, removendo centenas de milhares de suas publicações, de acordo com uma análise do New York Times da pequena parte de suas decisões que foi divulgada publicamente.

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Em alguns casos, ele disse que bloqueou as contas porque elas disseminavam discursos de ódio ou ameaçavam instituições, fornecendo exemplos. Porém, para mais da metade das contas, disse ele, o motivo pelo qual elas devem ser removidas está em sigilo. O ministro Barroso afirmou que as empresas de tecnologia poderiam solicitar explicações.

Essas medidas enfureceram a direita brasileira e, recentemente, Musk. O bilionário se recusou a cumprir as ordens. Moraes então bloqueou o X.

A luta pelo poder terminou com um claro vencedor: Musk recuou e cumpriu a ordem. Moraes suspendeu o bloqueio da X na semana passada.

Vítima, investigador e juiz

Em entrevistas, quatro altos funcionários da Procuradoria-Geral da República do Brasil descreveram as ações do tribunal como uma ampla tomada de poder, disseram que o tribunal não prestava contas e reclamaram que suas investigações se arrastaram por anos sem solução.

“Não há dúvida de que salvamos a democracia, e a Suprema Corte teve um papel real nisso”, disse Ubiratan Cazetta, um promotor federal brasileiro que lidera a associação oficial de promotores do país. “Mas o custo disso é o que me preocupa.”

O caso de Silveira demonstrou uma crítica central às ações recentes do tribunal: às vezes, ele tem sido a vítima, um investigador e o juiz, tudo ao mesmo tempo. Os ministros contestaram isso, dizendo que a vítima é a democracia brasileira, não eles.

(O advogado de Silveira disse que a condenação de seu cliente violou várias leis e sua imunidade legal como congressista.)

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Alguns especialistas jurídicos disseram que o tribunal respondeu adequadamente ao movimento de Bolsonaro porque o gabinete do procurador-geral do Brasil não o fez. Mas eles se preocupam com o fato de as ações do tribunal terem continuado após as ameaças terem diminuído.

“Tempos excepcionais exigem medidas excepcionais”, disse Thiago Amparo, um proeminente advogado brasileiro de direitos humanos que apoiou o tribunal. “Mas, quando você não tem mais momentos excepcionais, você não precisa de medidas excepcionais.”

Os brasileiros estão divididos. Em uma pesquisa da Pew Research deste ano, 47% dos brasileiros disseram que os tribunais eram uma má influência para o país, enquanto 45% disseram que eram uma boa influência.

A Lava Jato e o inquérito das fake news

Ao contrário da Suprema Corte dos EUA, que decide de 100 a 150 questões de constitucionalidade por ano, o tribunal superior do Brasil é quase um sistema judicial próprio. É um tribunal constitucional, um tribunal de recursos e, devido às novas investigações, cada vez mais, um tribunal criminal.

Sua sede modernista está repleta de juízes assistentes, advogados e assessores que processam cerca de 100 mil casos por ano. Acima deles, seus chefes são exibidos pelas TVs em audiências ao vivo, o que ajudou a tornar os ministros celebridades nacionais, em grande parte vistas como intocáveis. Nomeados pelo presidente, eles servem até os 75 anos de idade.

O ministro Dias Toffoli, responsável pela abertura do inquérito das fake news Foto: Wilton Júnior/Estadão

No início de 2019, reportagens sugeriram que uma ampla investigação de corrupção, a Operação Lava Jato, estava começando a cercar alguns juízes, inclusive o presidente do tribunal na época, o ministro Toffoli.

Ele criticou as reportagens que afirmavam que o tribunal estava tentando abafar a investigação. “Atacar qualquer um de nós é um ataque a todos nós”, disse ele aos colegas juízes em uma audiência em 2019. “Calúnia, difamação e insultos não serão permitidos.”

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No dia seguinte, o ministro Toffoli divulgou o inquérito sobre fake news. Em sua decisão de uma página, ele disse que o tribunal investigaria “notícias falsas, falsas denúncias de crimes, denúncias caluniosas, ameaças e outras infrações” que “afetam a honra e a segurança do Supremo Tribunal Federal, seus membros e família”.

Como justificativa legal, o ministro Toffoli usou um trecho das regras do tribunal que dizia que ele poderia investigar crimes cometidos contra juízes “na sede ou nas dependências da Suprema Corte”. Ele decidiu que isso estava desatualizado.

“Hoje o mundo é digital”, disse ele em uma entrevista recente. “Qualquer ataque em qualquer lugar da instituição é um ataque ao Supremo Tribunal Federal.”

De repente, a Suprema Corte poderia investigar praticamente qualquer crítica contra ela em qualquer lugar.

Em uma de suas primeiras ações à frente do inquérito, o ministro Moraes ordenou que uma revista, Crusoé, retirasse do ar um artigo on-line que vinculava o ministro Toffoli a um esquema de corrupção. Moraes chamou o artigo de “fake news”.

Mais tarde, quando a revista apresentou provas que mostravam que o relato estava correto, ele permitiu que a revista republicasse o artigo.

Na mesma época, o ministro Moraes ordenou batidas policiais contra sete pessoas que criticaram o tribunal em publicações on-line. Alguns chamaram o tribunal de corrupto e exigiram que os juízes fossem destituídos. A polícia invadiu suas casas, confiscando telefones e laptops.

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Anos depois, nenhuma acusação foi feita, mas seus bens não foram devolvidos, de acordo com um dos envolvidos nas invasões.

STF x Bolsonaro

Nos anos seguintes, o escopo do inquérito sobre fake news foi ampliado para se concentrar em quaisquer ataques contra instituições. O ministro Moraes então usou sua posição de supervisão para assumir o controle de pelo menos oito inquéritos semelhantes, a maioria focada nas ações de Bolsonaro e seus apoiadores. Isso fez com que o tribunal se tornasse o alvo número um dos aliados de Bolsonaro. Apoiadores furiosos do ex-presidente ameaçaram os ministros on-line, gritaram com eles em público e rastrearam seus movimentos em particular.

Jair Bolsonaro na Avenida Paulista no 7 de Setembro, em protesto que pediu o impeachment de Moraes Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Em um determinado momento, em uma aparente tentativa de intimidação, Bolsonaro ordenou que os caças voassem tão baixo sobre a sede da Suprema Corte que quebrariam as janelas do prédio. Os militares se recusaram.

O tribunal apenas endureceu sua abordagem. No período que antecedeu a eleição de 2022, o ministro Moraes, que também estava atuando como chefe das eleições do país, ordenou que as empresas de tecnologia retirassem contas ou postagens que, segundo ele, ameaçavam a integridade da votação, incluindo algumas de Bolsonaro.

Após a derrota de Bolsonaro, seus apoiadores bloquearam rodovias e acamparam em bases do Exército, alegando fraude e exigindo que os militares anulassem os resultados. O momento preocupou muitos em uma nação que sofreu com uma ditadura militar de 1964 a 1985. Moraes então ordenou a remoção de mais contas, que contestavam a votação ou apoiavam os protestos.

Também parece que ele foi atrás de uma organização de notícias que cobriu as alegações de fraude eleitoral. Em meio aos protestos eleitorais, um dos assessores do ministro Moraes ordenou a outro funcionário do tribunal que encontrasse justificativa para tomar medidas contra a Oeste, um veículo de notícias conservador, e “todas essas revistas que apoiam o golpe”, de acordo com mensagens de texto que vazaram e foram publicadas pela Folha de S.Paulo, um dos principais jornais do Brasil.

O oficial de justiça respondeu que só poderia encontrar “publicações jornalísticas” no site da Oeste que “não estavam dizendo nada”, segundo as mensagens. O assessor do ministro Moraes respondeu: “Use sua criatividade”. O funcionário disse que “encontraria uma maneira”.

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Semanas depois, o YouTube impediu temporariamente a Oeste de veicular anúncios em seus vídeos, alegando que ela havia publicado “conteúdo prejudicial”, disse a revista. Posteriormente, a Oeste disse que processou o YouTube e, em um processo judicial, encontrou uma ordem do ministro Moraes para impedir que ela ganhasse dinheiro com anúncios na plataforma. Uma porta-voz do tribunal negou que o ministro Moraes tenha enviado tal ordem. Desde então, o YouTube reverteu a ação.

Invasão dos corredores do poder

Uma semana após a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2023, centenas de apoiadores de Bolsonaro invadiram os corredores do poder no Brasil, incluindo o Supremo Tribunal Federal, exigindo um golpe. Eles fracassaram e, desde então, o ministro Moraes supervisionou mais de 220 condenações.

O ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente do STF Foto: Wilton Júnior/Estadão

Ele também enfraqueceu Bolsonaro. O tribunal eleitoral do Brasil, liderado pelo ministro Moraes, decidiu que o ex-presidente não poderia concorrer na próxima eleição porque tentou minar a votação de 2022.

O ministro Moraes também autorizou operações policiais contra Bolsonaro e muitos de seus assessores em três investigações separadas, incluindo acusações de que eles planejaram um golpe. A polícia confiscou o telefone e o passaporte de Bolsonaro.

Bolsonaro chamou as investigações de perseguição política.

Milhares de apoiadores do ex-presidente protestaram contra o tribunal nos últimos meses, pedindo o impeachment do ministro Moraes. Na semana passada, um comitê do Congresso brasileiro votou para limitar os poderes do tribunal. É improvável que o projeto se torne lei.

Em entrevistas, os juízes disseram que a democracia do Brasil continua sob séria ameaça e que criticá-los prejudica seus esforços para protegê-la.

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“Estamos lidando com pessoas perigosas”, disse o ministro Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal. “E não podemos nos esquecer disso.”

Mas o que acontece se o tribunal entender errado?

“Alguém deve ter o direito de cometer o último erro”, disse ele. “Não acho que tenhamos errado, mas a palavra final é da Suprema Corte.”

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