BRASÍLIA - Nome de referência internacional e colaborador do programa do governo eleito, João Paulo Capobianco afirma que a área ambiental não precisa apenas de um “revogaço” para dar fim ao desmantelamento do setor causado durante a gestão Bolsonaro. É preciso fazer um “avançaço” no setor. Ele defende ainda a reestruturação dos órgãos ambientais, a retirada dos militares da coordenação de ações de fiscalização ambiental e uma transição gradual que reduza os incentivos em combustíveis fósseis.
Ex-secretário na gestão de Marina Silva à frente do Ministério de Meio Ambiente, Capobianco destaca que definição de política socioambiental não será periférica no próximo governo.
Nesta semana em que o mundo espera sinais claros e compromissos do Brasil e de Lula durante a COP 27, Capobianco diz que “um ministro da economia que não esteja atento às oportunidades não vai ter a menor chance de prosperar”. Ele ressalta que fala de forma pessoal e não recebeu convite para integrar o governo.
Leia abaixo a entrevista.
O tema ambiental terá importância efetiva no governo ou serviu só para discurso de campanha?
É importante destacar o posicionamento do presidente Lula, que vem se repetindo em vários momentos, sinalizando claramente que a agenda socioambiental subiu de patamar na escala política e deve ter um tratamento diferenciado do que vimos até hoje. Isso é claro nas falas dele e na forma como recebeu as contribuições da Marina Silva, em especial. Ficou claro, no discurso da vitória, que a questão ambiental aparece com muita força. Eu diria até que, para nós que estamos acompanhando, me surpreendeu. Não será algo periférico, para enfeitar. Eu vejo como algo internalizado no presidente.
E o revogaço das normas editadas por Bolsonaro? Como será isso?
Há um conjunto grande de medidas infralegais, principalmente, que terão que ser revistas. Será necessária uma ação de reorganização desses atos todos. Agora, na minha perspectiva, e eu acredito que seja a do próprio presidente, não é só um revogaço. Não adianta nada fazer o revogaço e voltar à realidade pré-Bolsonaro. Além de termos retroagido, nesse período a agenda avançou muito no mundo todo, mas nós não evoluímos juntos. Temos que fazer uma ação para corrigir perdas e danos, com uma necessidade de acelerar a agenda. Em vez de revogaço, eu prefiro um avançaço, para recolocar o País num patamar em que recupera sua capacidade de gestão e de diálogo construtivo no plano internacional. Falar em revogação hoje dá uma ideia, para mim, de que vamos voltar para 2017, 2018. O mundo exige novos compromissos. Recuperar uma gestão pública já é um enorme feito, mas avançar significa que vamos olhar para o século 22.
O que isso significaria, na prática?
No Brasil, as questões ambientais e sociais estão muito interligadas. Para um governo que tem como compromisso promover a inclusão social, a questão social vem junto. Basta ver os impactos das mudanças climáticas que temos hoje, em função do baixíssimo investimento em adaptação. É central, porque quem está em zona de risco sofrendo mais impactos é a população de baixa renda. E isso é uma questão econômica. Assim como a questão energética também é. Uma agenda afirmativa nesse campo é uma agenda econômica, porque há recursos internacionais para investimento privado, fundos de investimento que estão crescendo e que estão na busca de bons projetos. Não há dúvida que é uma agenda urgente, mas é uma agenda de oportunidades.
Qual é a expectativa de retomar iniciativas como Fundo Amazônia e Fundo Clima?
Isso tem que ser uma prioridade, porque são recursos em caixa e têm que ser destravados. O Brasil tem que sair da posição da chantagem para a posição da ação concreta. O governo atual achou que poderia chantagear o mundo. No sentido de ‘se não me der dinheiro, a Amazônia vai pegar fogo’. É coisa não só irresponsável, como um erro estratégico. Muitos desses grandes fundos de investimento têm como principais acionistas uma segunda geração de milionários da Europa e dos EUA que incorporaram essa questão da sustentabilidade. É uma mudança de paradigma. Os investidores, ao questionarem o gestor do fundo, questionam a relação entre o investimento e a redução das emissões e da melhoria da qualidade de vida. O ambiente é muito propício para isso. É o caminho que o Brasil deve trilhar.
Como a política econômica trata da questão ambiental no Brasil? Não estamos atrasados?
São dois caminhos. Na parte urbana, nas cidades em geral, essa responsabilidade é dos governos locais. O que seria uma política para isso? O que a Marina propôs ao presidente: a criação de uma linha orçamentária destinada a financiar objetivamente ações de adaptação onde há riscos em função dos eventos climáticos extremos. São ações que passam, por exemplo, por apoiar de forma correta a mudança de populações de zona de riscos, onde há problemas de relevo, de solo, de qualidade ambiental. Tem que ter uma melhoria desses locais com obras e ações, melhoria das construções, das casas populares para que elas incorporem medidas preventivas. Ações para melhoria do espaço urbano para aumentar infiltrações e cuidar de uma parte que é relegada ao 15º plano, que a parte de drenagem urbana. Custa caro e tem que haver investimento. O saneamento é central também.
O Brasil tem um problema antigo e básico que não está resolvido: a questão dos lixões. Em Manaus, se vê lixão no rio de forma chocante. O que pensa a respeito?
É tema crucial da agenda. Um dos compromissos assumidos em Glasgow na COP do clima foi exatamente a questão do metano, que entrou na agenda do clima de forma muito firme. Por quê? É um gás que tem um impacto sobre as emissões. Ele tem um potencial de aquecimento extremamente alto. O Brasil emite cerca de 5,5% de todo o mundo. A maior parte vem da pecuária, mas uma parte importante vem exatamente da disposição de resíduos sólidos. Enfrentar a questão do metano implica numa ação de interesse direto das emissões de um lado e é um excelente exemplo de projeto de adaptação. Melhora as condições ambientais e reduz o impacto sobre as populações locais e as emissões. Como isso é uma prioridade da Convenção do Clima, haverá investimentos.
Qual é a visão de futuro, do ponto de vista econômico desses investimentos?
Geração de emprego e renda, melhoria do PIB. É ver esforço internacional em relação ao clima como oportunidade. Se olharmos o nosso perfil de emissão, a maior parte é por desmatamento. E está crescendo. Pegue os dados de 2017 a 2021. Em 2017, 39,49% das emissões vinham de desmatamento. No governo Bolsonaro, passou para 49% em 2021. Metade das emissões de gases de efeito estufa no Brasil tem origem no desmatamento, que não gera economia. A maioria desse desmatamento é especulativo, de grilagem de terra pública.
Esse desmatamento, então, não gera aumento de PIB?
Não gera. Reduzir as emissões no Brasil não implica em impacto sobre o PIB. Ao contrário. Reduzir as emissões implica numa oportunidade de crescimento econômico. É uma questão de bons projetos. O Brasil é o primeiro País que teria a oportunidade não apenas de ser carbono neutro. O Brasil pode ser carbono negativo.
De que forma?
O volume de áreas a serem restauradas no Brasil, por exemplo, implicaria numa economia da floresta inédita de processos produtivos. Tem que ter viveiros, isso é obra, tem que ter mão de obra capacitada, é emprego, e ao mesmo tempo, captura CO2. A lei brasileira exige, independente da Convenção do Clima. Já temos uma agenda de redução de emissão e captura de emissão enorme. É uma questão de financiamento, política pública, estímulo, de criar oportunidade.
Com os fundos que temos hoje, uma vez destravados já seriam suficientes para fazer frente a uma boa parte desses desafios?
Não seriam suficientes. Mas seriam fundamentais para ‘startar’ (começar) o processo. No caso da Amazônia, eu diria que com os recursos orçamentários que o Brasil possui tem uma enorme capacidade de reduzir desmatamento. O Brasil já fez isso sem investimento internacional. O Programa de Prevenção e Controle do Desmatamento, conhecido como PPCDAm, foi implementado com recursos orçamentários dos 13 ministérios que participaram do plano. Por outro lado, a transição econômica na Amazônia vai precisar de investimento grande. Muito maior do que o recurso necessário para controlar o desmatamento. Segurar o desmatamento é urgente. Fecha-se a porta da ilegalidade, do desmatamento, mas tem que abrir a porta das atividades econômicas sustentáveis.
O Brasil vai perder de R$ 52 bilhões em arrecadação para incentivar combustíveis fósseis. É uma montanha de dinheiro. Isso não é um problema?
É uma disfunção da economia. É que nosso desafio é construir uma transição. Nenhuma decisão de rompante, nenhuma radicalização do tema vai resolver, isso paralisaria o País. É preciso que o governo implemente um processo para chegar ao objetivo. Temos que reduzir os combustíveis fósseis, dentro de um parâmetro social e econômico adequado. Por isso, Marina Silva levou ao presidente Lula a ideia de uma autoridade nacional climática, uma instância de governo que tenha a função institucional de mobilizar a sociedade para atingir as metas que o Brasil estabeleceu. É um arranjo que estimule o governo e, também, a economia, a perseguir isso. Não podemos ter ações que continuem a estimular quem produz essas atividades mais emissoras. É preciso substituí-la por estímulos àqueles que estão fazendo essa transição.
O governo Lula terá condições de reestruturar os órgãos ambientais?
Eu acredito que sim. Será preciso ainda recuperar a função institucional desses órgãos, como o papel no planejamento de ações de fiscalização e controle, que era do Ibama. Os demais órgãos apoiavam as ações. O grande da política atual foi esse, trazendo as Forças Armadas para coordenarem esses processos. Ela tem papel importante, mas não de comandar isso, por falta de conhecimento nessas operações. É preciso retomar todos esses órgãos, como nomeação de pessoal de carreira, que conhece esses órgãos.
Ocorre que estes órgãos foram esvaziados.
Eu não tenho dúvidas de que é preciso aumentar os quadros, com uma ação muito concreta na renovação da equipe, com realização de concurso público. Sem isso, não vejo possibilidade nenhuma de reestruturação. Esse é um desafio que o governo vai ter que enfrentar. Eu entendo que isso já está subentendido. É uma obrigação. Assim como teremos de revogar uma série de ações do governo federal, teremos de ter mais equipe, remontar esses órgãos públicos.
O futuro ministro da Fazenda precisará estar conectado com a agenda ambiental?
Há algum tempo a questão ambiental não estava colocada nesse campo (da economia). Era um problema de licenciamento, de impacto. Mas a realidade mudou. Estamos abrindo o País a receber investimentos pesados do ponto de vista internacional. Um ministro da economia que não esteja atento às oportunidades não vai ter a menor chance de prosperar.
É possível zerar o desmatamento ilegal em 2028?
É factível. Não só zerar o ilegal como reduzir o legal, aquele que a lei permite. É absolutamente indesejável que se faça o desmatamento desses 20% que seriam legalmente permitidos. Mas isso é um direito que os proprietários têm.
O presidente eleito Lula falou sobre uma participação transversal da gestão ambiental com todos os ministérios. O que é isso?
É uma conquista importante do ponto de vista político. A agenda ambiental sempre foi considerada uma agenda paralela, subalterna e periférica. Isso é inviável. O grande exemplo inspirador que fez com esse tema foi a experiência do PPCDAm porque a concepção do plano foi de que não era um plano ambiental, mas de governo. Isso se traduziu colocando a coordenação do plano na Casa Civil. Essa foi a virada de chave. Isso é transversalidade. O segredo é fazer um planejamento conjunto em que cada ministério assume um conjunto de ações para atingir o objetivo.
É isso que vai acontecer novamente?
Tem que acontecer. Se isso não acontecer, não há a menor chance de implementar uma política de clima consistente.
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