BRASÍLIA - O Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) do governo Lula (PT) prepara dois conjuntos de propostas para combater a infiltração do crime organizado no Estado brasileiro. Numa das frentes, planeja mudar a legislação para permitir o confisco de bens ligados indiretamente a facções. Em outra, escolher uma cidade-piloto no Nordeste para tentar viabilizar a retomada territorial das mãos de criminosos.
A Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) deve publicar nos próximos dias uma portaria instituindo um grupo de trabalho para elaborar um projeto de lei antimáfia a ser levado para votação no Congresso. Os trabalhos deverão durar 60 dias, prorrogáveis por mais 30, e envolver forças de segurança de todo o País, além de ONGs e universidades, e as demais secretarias do MJSP.
A previsão é que o projeto antimáfia avance em questões que a Lei de Organizações Criminosas, instituída em 2013, não tratou. A opinião de especialistas no assunto é que o País viveu episódios na última década que demonstraram uma infiltração sem precedentes do crime no poder público e na sociedade, como o avanço das milícias no Rio de Janeiro e a atuação do PCC em licitações na Prefeitura de São Paulo.
“Um novo momento do crime organizado, já em nível transnacional, com muita interlocução com o poder público, na questão eleitoral, com o mundo privado. Era um cenário que não tínhamos quando foi criada a Lei das Organizações Criminosas lá atrás. Hoje a gente tem outro estágio da criminalidade. Queremos olhar para a lei antimáfia da Itália, entender o que eles têm lá e o que pode se adaptar ao Brasil”, diz o secretário nacional de Segurança Pública, Mario Sarrubbo.
Entre os atores que devem fazer do grupo de trabalho circula a ideia de criar um instrumento para facilitar o confisco de ativos vinculados à prática de crimes, penalizando pessoas e empresas que se envolvam com facções criminosas. A chamada ação de extinção do domínio daria poder ao Estado brasileiro de se empossar de bens envolvidos indiretamente em atividades criminosas, permitindo que ativos sejam retirados de circulação rapidamente, antes mesmo de um eventual processo judicial estar concluído.
A medida visa atacar a capacidade financeira e patrimonial de organizações criminosas, que têm operado cada vez mais a partir de um complexo de empresas e intermediários a fim de lavar o dinheiro e despistar as autoridades.
Em São Paulo, por exemplo, uma investigação liderada pelo Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público, descobriu que duas grandes empresas de ônibus operando em contratos com a Prefeitura da capital (Transwolff e UPBus) eram controladas pelo PCC. Ainda que o serviço oferecido fosse lícito, o envolvimento indireto com o crime viabilizaria ao Estado se apossar dos ônibus, terrenos, bens e valores dessas empresas se essa medida estivesse em vigor.
Outra ideia é fechar o cerco sobre a participação de criminosos nas eleições, endurecendo a punição para compra de votos e tornando a Lei da Ficha Limpa mais rigorosa. A infiltração do crime no processo eleitoral tem preocupado autoridades. Na última sexta-feira, 20, a Polícia Federal deflagrou uma operação para investigar o envolvimento de uma facção nas eleições no Amapá. Dois políticos foram alvos de mandados de prisão preventiva, suspeitos de compra de votos, coação eleitoral, tráfico de drogas e organização criminosa.
A nova lei deve servir para integrar sistemas policiais, permitindo que um boletim de ocorrência registrado em um Estado possa ser acessado numa delegacia de outra parte do País, o que não acontece hoje. Também pode permitir um maior prazo para interceptações telefônicas de suspeitos.
O MJSP também prepara um projeto, em estudo com universidades e organizações da sociedade civil, para fortalecer a capacidade do Estado de retomar territórios dominados por grupos criminosos. Um pequeno município do Nordeste deve ser palco de um experimento nos próximos meses, em que o governo pretende expulsar criminosos a partir de uma operação e devolver a atividade econômica do local à comunidade. A intenção do governo Lula é criar um modelo para ser replicado a outras cidades.
“A gente está escolhendo um local para ter o primeiro projeto, uma experiência-piloto. Será uma pequena cidade provavelmente no Nordeste. Não adianta fazer operação (policial), prender os sujeitos, mas aquela economia (criminosa) continuar funcionando ali”, afirma Sarrubbo. “A ideia é mediar conflitos, (implementar) centros de convivência, fomentar o empreendedorismo, substituir as atividades econômicas naquele local para extirpar de vez o crime. É mais do que ter a presença de forças policiais”.
O avanço de facções como PCC e CV a nível nacional, e para além das fronteiras, tem levado as autoridades a estreitar a cooperação entre estados e órgãos. Especialistas avaliam que os trabalhos individuais das polícias estaduais, restritos a seus territórios e sem coordenação com outras forças, não são mais capazes de fazer frente a grupos que hoje dominam territórios da Amazônia à fronteira com o Paraguai e ao Porto de Santos.
No começo do mês, o MJSP organizou a primeira reunião da Rede Nacional de Unidades Especializadas de Enfrentamento das Organizações Criminosas (Renorcrim), reunindo membros de Polícias Civis e Ministérios Públicos numa tentativa de integrar as instituições, compartilhar informações e traçar estratégias de inteligência para desmantelar organizações criminosas.
Em julho, o MJSP enviou para a Casa Civil uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que amplia as atribuições da Polícia Federal (PF) e permite que a corporação combata o crime organizado e ainda milícias. Se aprovado, o projeto também vai estender a atuação da PF para áreas de matas, florestas, áreas de preservação e unidades de conservação, sendo possível operações interestaduais e até internacionais.
O texto, em análise na Casa Civil, também amplia a atuação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) para ferrovias e hidrovias, além de bens e serviços de órgãos federais. Com isso, ela deve ser rebatizada para Polícia Ostensiva Federal.
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