Na visão do historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, a onda de ataques a nordestinos nas redes socais cristalizam o voto de eleitores da região no petista Luiz Inácio Lula da Silva (PT). “O regionalismo nordestino é muito forte”, explica. Ele avalia que mensagens preconceituosas podem se materializar em formas de violência mais grave.
Professor das universidades federais de Pernambuco (UFPE) e Rio Grande do Norte (UFRN), doutor em História e autor do livro A Invenção do Nordeste, ele usa o termo “preconceito por origem regional” para definir mensagens preconceituosas compartilhadas após o petista se consolidar como favorito dos nove Estados que compõem a região, no primeiro turno.
As mensagens partem principalmente de perfis anônimos, mas que se identificam como apoiadores de Jair Bolsonaro (PL). As postagens reduzem o Nordeste a uma imagem de pobreza e subdesenvolvimento.
Para o professor, o preconceito contra o Nordeste se relaciona também ao racismo e à aversão ao pobre. “O nordestino no imaginário nacional é um pobre, é um retirante, é um migrante, é um trabalhador braçal, é um mestiço, um negro.”
Albuquerque aponta que os ataques preconceituosos contra o Nordeste não são uma novidade deste pleito. Pelo contrário, são “recorrentes” nas disputas eleitorais.
Conforme a ONG Safernet, indicadores de sua central de denúncias de crimes cibernéticos indicam que “as eleições são como um gatilho para o avanço do discurso de ódio”. A central recebe denúncias de dez tipos de crimes contra os direitos humanos, como racismo, LGBTfobia e xenofobia.
Os dados abertos mostram que denúncias de xenofobia costumam aumentar em ano de eleição. Em relação a 2017, 2018 apresentou um crescimento de 595,5% nos registros. De 2019 para 2020, o aumento foi de 111,20%.
Comparando o primeiro semestre deste ano com o de 2021, a organização já observou aumento de 520,6% nas denúncias de xenofobia. Na primeira metade do ano passado, foram 358 registros, em 2022, 2.222.
Confira mais trechos da entrevista:
Essa onda de preconceito contra nordestinos é uma novidade deste pleito ou é algo recorrente em eleições anteriores?
Isso é recorrente. Esses ataques violentos aos nordestinos que partem principalmente de pessoas que moram no sul do País, em São Paulo e no Centro-Oeste, têm sido recorrentes em todas as eleições. No domingo à noite estava circulando um mapa do Brasil com o Nordeste em vermelho escrito “Cuba do Sul”, ignorando que o PT venceu também no Pará e no Amazonas, que o PT venceu em Minas Gerais. Quer dizer, como sempre, o preconceito contra o nordestino faz com que só se visualize o Nordeste. A primeira eleição que Dilma venceu, venceu inclusive no Rio de Janeiro em São Paulo, mas todo ódio se voltou contra os nordestinos.
Já existe um preconceito contra o Nordeste nacionalmente. Uma visão que tem um fundo inclusive racial, racista. Porque as pessoas do Sul têm a ideia de que são brancos, que são descendentes de europeus, e os nordestinos são mestiços, são pardos, são negros, são indígenas, não houve pra cá o fenômeno da imigração estrangeira, então somos considerados racialmente inferiores. Isso se mostra no estereótipo do “cabeça chata”, no estereótipo do nordestino como pessoas que não têm inteligência, que estão destinadas ao trabalho braçal. Circula por exemplo que os nordestinos votam porque têm fome e têm os votos comprados, como se não existisse fome no Brasil inteiro. Houve falas inclusive no sentido de que se encontrassem nordestino na rua pedindo esmola atropelasse. O preconceito contra o nordestino é também preconceito contra o pobre.
Os ataques vêm principalmente de perfis bolsonaristas. Isso pode afastar ainda mais o voto das pessoas que vivem ou que nasceram no nordeste de Bolsonaro?
É um fator a ser levado em conta. De uma forma geral, os nordestinos quando votam e votam em Lula, votam primeiro porque tem uma identificação regional com ele. O regionalismo nordestino é muito forte, justamente porque os nordestinos são estigmatizados e hostilizados. Em grande medida, essa identidade do nordestino se constituiu com a saída em massa dos nordestinos para fora da região e a vivência deles de muitas dificuldades, inclusive de preconceito. E por isso se aglutinam em torno de uma figura como o Lula, que fez a trajetória de milhares de nordestinos.
Essa reação bolsonarista com certeza só cristaliza ainda mais os votos na região em torno de Lula. Não sei se modifica voto, mas que cristaliza, cristaliza.
O pleito deste ano tem sido marcado por graves episódios de violência. Essa onda de ataques xenofóbicos contra pessoas do Nordeste coloca essa população em risco de sofrer formas de violência grave?
Eu acho que sim. Os nordestinos correm risco de vida, sempre correram, principalmente aqueles que são pardos e que são negros, inclusive no interior da própria região. No Ceará houve um assassinato. Um rapaz entrou num bar e perguntou quem vota em Lula; outro disse “eu voto”. Ele foi lá e matou o rapaz. Eu venho do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra foi reeleita governadora no primeiro turno e as comemorações foram muito discretas. A maioria das pessoas está com muito medo de sair na rua, medo de se aglomerar num lugar e festejar e alguém jogar um carro em cima, passar atirando.
Qual a origem desse preconceito contra o nordestino?
O preconceito regional contra o nordestino começa a existir antes mesmo da identidade. Começa com a chegada em massa dos baianos nos anos 20 em São Paulo. As elites paulistas tinham um projeto de branqueamento da sociedade paulista após a abolição. O que acontece? Nos anos 20, a Bahia vive uma grave crise econômica de suas principais atividades - a cana, o fumo, o cacau - e há uma grande imigração de baianos para São Paulo. Baianos, majoritariamente negros, isso gera muitas tensões.
E qual a relação com as eleições?
As eleições são um momento de explicitação do preconceito. Como todo momento de tensão e de disputa, todos os preconceitos vêm à tona.
Como podemos lidar com esse preconceito e de que maneira podemos combatê-lo?
Fundamentalmente com a educação. O preconceito está incrustado na subjetividade das pessoas. Constitui a sua subjetividade, portanto, só há mudanças subjetivas através de educação, através de pedagogias que não necessariamente tem que ser escolares. A imprensa tem um grande papel nisso, porque também pode exercer um papel pedagógico, justamente de problematizar, criticar e principalmente mostrar a dimensão absolutamente contraditória e falaciosa desses discursos.
O problema é que em grande medida a produção cultural e inclusive a mídia tende a veicular as mesmas imagens, inclusive preconceituosas em relação a região. Os mesmos estereótipos, os mesmos lugares comuns, os mesmos clichês. A população nordestina não se reconhece naquilo ali há muito tempo. Não tem ninguém no Nordeste mais que corresponda aquela pessoa com lenço amarrado na cabeça. Nós temos três das maiores metrópoles do País e 70% da população morando em cidades. O sertão não significa mais “a terra onde Judas perdeu as botas”. O sertão hoje é moderno, é globalizado, tem tudo que tem em qualquer outro lugar, tem internet, tem moto.
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