Operação mira rede de 78 hotéis e hospedarias do PCC no centro de São Paulo e prende 15

Investigação conseguiu a interdição de 26 hospedarias clandestinas e cumpriu 124 mandados de buscas; 600 policiais civis e guardas metropolitanos participam da ação

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Foto do author Marcelo Godoy
Atualização:

O Primeiro Comando da Capital (PCC) comprou ou montou 78 hotéis e hospedarias, 26 das quais clandestinas, no centro de São Paulo, para abastecer e manter o tráfico de drogas na região. Assim, a facção expandiu as ramificações da Cracolândia até as proximidades das praças Marechal Deodoro, Princesa Isabel e dos Largos do Arouche e do Paissandu, passando por endereços das Avenidas São João e Duque de Caxias.

Polícia mapeou a rede de hotéis e hospedarias mantida pelo PCC no centro da cidade Foto: Reprodução/Estadão

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Essa é uma das principais conclusões da apuração da 4.ª Delegacia da Divisão de Investigações Sobre Entorpecentes (DISE), do Departamento Estadual de Investigações sobre Narcóticos (Denarc), que levaram à deflagração nesta quinta-feira, 13, da segunda fase da Operação Downtown. Ao todo, foram cumpridos 124 mandados de busca e apreensão em endereços da região. A Justiça concedeu a interdição de 26 hospedarias clandestinas – cada uma avaliada em R$ 200 mil – e o bloqueio dos valores encontrados em 28 contas bancárias. Quinze acusados de participação no esquema foram presos – cinco eram foragidos da Justiça –, 38 celulares apreendidos, além de 30 quilos de cocaína, crack e skank, além de R$ 27,5 mil em dinheiro

“O tráfico de drogas no centro histórico da capital só se sustenta em grande escala através do uso de hospedarias. Elas são fundamentais para o esquema”, afirmou o delegado Fernando José Santiago, responsável pelas investigações. O inquérito mostrou como as compras dos imóveis foram feitas antes e de acordo com a migração da Cracolândia, que ocupou nove diferentes endereços na região em 2022. Vários imóveis foram colocados em nome de porteiros, ajudantes gerais e até de usuários de drogas, os laranjas que seriam usados pelo PCC para dissimular a construção da rede de hotelaria.

Esse seria o caso de Genário José de Oliveira, que é porteiro do Hotel dos Andradas e figura como dono de uma hospedaria no Largo General Osório, bem como de Ednilson Lopes dos Santos, que aparece na investigação como proprietário de outro Hotel, o Tupy, mas trabalha como porteiro do Hotel Curitiba. “O que reforça ainda mais os indícios de um esquema de lavagem de capitais envolvendo várias hospedarias do centro histórico de São Paulo”, disse o delegado Santiago.

Equipes da Polícia Civil vasculharam hotéis e apartamentos que seriam utilizados pelos suspeitos de participação na rede de 78 hotéis e hospedarias do PCC no centro de São Paulo; na foto, movimentação de policiais no Condomínio Ed. Miri, na Praça Júlio Prestes Foto: Werther Santana/Estadão
Mapa feito pela polícia sobre a migração da Cracolândia em 2022 ao redor dos hotéis da facção Foto: Reprodução/Estadão

A importância dos investimentos nas hospedarias e hotéis pode ser demonstrada pelo papel desempenhado pela Cracolândia no tráfico de drogas local gerenciado pelo PCC. De janeiro a junho de 2023, apenas quatro bairros da capital paulista que concentram a rede de hotéis da facção – República, , Santa Cecília e Santa Ifigênia – foram responsáveis por cerca de um terço de toda apreensão de crack no Município (423.712 pedras), o que corresponde a 11% do crack recolhido pela polícia em todo Estado.

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Em todas as hospedarias e hotéis investigados, a polícia registrou denúncias de tráfico de drogas ou de prostituição. Os traficantes de drogas delimitariam até mesmo o espaço na rua ocupado pelos usuários de entorpecentes e os lugares de cada barraca para a venda da droga. Ao todo, 600 policiais civis de diversos departamento e guardas civis metropolitanos foram convocados para participar da operação. O delegado-geral, Artur Dian, afirmou que a operação envolveu uma “investigação bastante complexa”.

O plano de migração da Cracolândia

De acordo com o delegado Santiago, a política da Prefeitura de emparedamento de hospedarias – fechamento com construção de barreira de tijolos na fachada para vedar a entrada no prédio – na antiga Cracolândia, no segundo semestre de 2021, foi o gatilho que determinou a migração do fluxo no ano seguinte. Isso permitiu à polícia demonstrar o controle exercido pelo crime organizado nessa ação. E levou os investigadores a um dos principais alvos da operação de hoje: os estabelecimentos controlados por Marcelo Carames, de 45 anos, apontado como o gerente do tráfico de drogas do PCC na região.

Marcelo Carames é apontado como o gerente da rede mantida pelo PCC no centro da cidade Foto: Reprodução/Estadão

Carames teria idealizado o esquema por trás da migração da Cracolândia. Ele era dono de hospedarias na Alameda Dino Bueno e no Largo Coração de Jesus, que foram emparedadas pela Prefeitura no dia 21 de outubro de 2021. O fluxo se concentrara ali durante uma década.

O comerciante adquiriu, em dezembro daquele ano, duas novas hospedarias na Avenida Duque de Caxias, próximo da Praça Princesa Isabel, para onde o fluxo seria transportado pelo PCC no dia 19 de março de 2022. Sob ameaça da facção, Thiago Campos, o proprietário de uma delas, teve de repassar o imóvel ao PCC.

Não parou aí. Segundo a investigação, enquanto o fluxo de usuários peregrinava pelo centro histórico de São Paulo, Carames comprou uma nova hospedaria, a Pensão Paraíso, na esquina entre as ruas dos Gusmões e do Triunfo, a uma quadra da Rua das Protestantes, em 3 de junho de 2022. No dia 29 daquele mês, o fluxo se mudou para ali, estabilizando-se nessa área até hoje. Em 20 de março de 2023, o acusado comprou o Hotel Tupy, na Rua dos Gusmões.

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“Carames por duas vezes se antecipou dias antes à migração dos dependentes químicos, estabelecendo hospedarias nos exatos locais para onde o ‘fluxo’ iria se fixar dias depois, o que deixa claro o envolvimento dele com a migração dos usuários de drogas no centro histórico”, afirmou o delegado Santiago.

O fluxo de usuários na Cracolândia fotografado pela polícia durante as investigações Foto: Reprodução/Estadão

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Outro que comprou imóveis na região antes da migração da Cracolândia para a área atual é João Caboclo do Nascimento. Ele tinha um bar e hospedaria no Largo Coração de Jesus com a Alameda Dino Bueno e agora está instalado na Alameda Barão de Piracicaba. No mesmo tempo, comprou um bar e uma hospedaria na Avenida Duque de Caxias, perto da Praça Princesa Isabel, onde o PCC instalara o fluxo em 2022.

Caboclo acabou detido em um apartamento na Praça Júlio Preste pelos policiais do Denarc. “O PCC é quem determina qual de seus membros será o administrador das hospedarias clandestinas”, escreveu Santiago. Sem elas, não haveria como manter a logística de distribuição de drogas em toda a região.

Exemplo do poder da facção na região seria a rotina da concentração de usuários. O fluxo permanece na Rua dos Protestantes durante o horário do funcionamento do comércio da região da Santa Ifigênia. “Encerradas as atividades das lojas comerciais, os dependentes químicos passam a circular pela Rua dos Gusmões, onde parte do grupo se aglomerar no cruzamento com a Rua dos Andrades, que é a paralela imediata sul da Rua do Triunfo, enquanto a Rua dos Protestantes é a paralela imediata ao norte”, relatou o delegado do Denarc.

Ali são montadas as barracas de venda da feira das drogas, que funciona até o amanhecer do dia, quando são recolhidas. A ida do fluxo para as ruas do Triunfo, dos Gusmões e dos Protestantes causou severo impacto no comércio da região, aumentando furtos e roubos, o que amedronta os consumidores na mais tradicional região de comércio de eletrônicos da cidade: a Santa Ifigênia. Comerciantes tiveram lojas saqueadas, motoristas foram cercados e saqueados por hordas de usuários de drogas.

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Tribunal do crime e internação compulsória do PCC

Os responsáveis pela 'disciplina' na Cracolândia: Zen está entre eles, segundo a apuração do Denarc Foto: Reprodução/Estadão

Outro investigado no caso, Sidney Anderson Ferreira da Silva, o Zen, adquiriu a hospedaria Nosso Lar, na Avenida São João, cujo CNPJ é o de uma lavanderia. A hospedaria teria servido para a logística de abastecimento do fluxo quando a Cracolândia se instalou nas Alamedas Helvétia e na Rua Frederico Steidel, em maio de 2022, depois de deixar a Praça Princesa Isabel.

Zen e Adilson Gomes da Silva, o Deco, são acusados de serem os “disciplinas” da facção na região, os homens responsáveis pelo tribunal do crime na Cracolândia. Para manter a ordem na região, os bandidos impõem como penas aos infratores a internação compulsória em clínica de tratamento, a expulsão do fluxo ou até a morte. Deco também figura como dono do chamado “Hotel do PCC”, na Rua Barão de Piracicaba, e de um estacionamento.

“Foi neste estacionamento que, no dia 28 de dezembro de 2022, após a migração do fluxo, a PM encontrou um rapaz amarrado que teria acabado de ser deixado no local em razão de um crime de furto cometido no fluxo”, contou o delegado Santiago. Condenado à morte pelo PCC, ao rapaz foi dada a opção de ser internado compulsoriamente em uma clínica para dependentes. Quando a PM chegou ao lugar, a equipe da clínica já estava ali para apanhá-lo.

Gráfico da polícia com os locais com registro de apreensões de drogas no primeiro semestre de 2023 na Cracolândia Foto: Reprodução/Denarc

Outras três pessoas são investigadas como responsáveis por gerir hospedarias para a rede do PCC: José Onofre de Jesus, Sirley Aparecido dos Santos e Sheila Regina Costa. A investigação também determinou o caminho da droga até a Cracolândia. Ela viria da favela de Paraisópolis, área controlada pelo PCC. É transportada em veículos até a rede de hotéis e hospedarias da facção, que serviriam de entreposto para a distribuição das drogas, além de esconderijo para bandidos procurados pelos policiais, que são abrigados ali sem que seus nomes sejam incluídos na lista de hóspedes.

Movimentação de dinheiro da Cracolândia

Foi por meio da avaliação da movimentação financeira dos acusados que a polícia chegou à área da reciclagem de sucata e ferro-velho, outro dos negócios controlados pelo PCC na região. Também foi por meio dessa avaliação que os policiais conseguiram determinar a hierarquia da organização na região, no topo da qual estaria Sheila Regina Costa. Ela teria uma posição que a colocaria acima de Carames na facção, servindo de ligação do esquema do centro da cidade com a cúpula da organização.

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Policiais vasculharam apartamento e hotéis dos suspeitos de envolvimento na rede da facção; na foto, a movimentação de policiais em um condomínio, na praça Júlio prestes, onde um dos investigados, o comerciante João Caboclo, foi detido Foto: Werther Santana/Estadão

As contas bancárias ligadas a Carames registravam R$ 430 mil de entradas e R$ 400 mil de saídas entre setembro de 2022 e março de 2023, de acordo com análise feita pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Carames teria como renda mensal declarada R$ 5 mil. Suas contas e as de seu grupo foram classificadas como contas de passagem dos valores do tráfico em benefício de Sheila, que também seria proprietária de dois hotéis e de uma hospedaria na região: o Hotel Manchete, na Avenida São João, o hotel Aurora, na Rua Aurora e uma hospedaria clandestina na Avenida Rio Branco.

De acordo com a polícia, os investigados são todas pessoas atuantes na rede hoteleira da região e têm histórico de envolvimento com o tráfico de drogas ou que fizeram negociações com envolvidos no tráfico. A investigação atingiu ainda supostos integrantes da rede que registraram movimentação financeira acima de seus rendimentos lícitos.

Nesse caso estaria Andressa dos Santos Borges, que recebia auxílio emergencial de R$ 2,8 mil, mas aparece como dona de uma empresa de reciclagem, sucata e ferro-velho uma das cinco desse ramo sob investigação. Por meio dela, os policiais chegaram a outra peça importante desse enredo: Daniela Regina Romano, que tem pelo menos três acusações formais de crime de tráfico de drogas.

Inquérito aponta Sheila como a ligação entre a organização na Cracolândia e a cúpula da facção na capital. Aqui, gráfico da polícia mostrando sua posição hierárquica no grupo Foto: Reprodução / Estadão

O Estadão procurou a defesa dos acusados, mas não conseguiu localizá-la, assim como dos hotéis citados e das empresas de reciclagem. Nas oportunidades em que foram ouvidos em outros casos pela polícia e pela Justiça, os acusados sempre alegaram inocência ou permaneceram em silêncio.

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