Publicada em agosto, a Resolução nº 23 da Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc), órgão ligado ao Ministério da Previdência, reduz as possibilidades de penalização administrativa contra gestores de fundos de pensão acusados de irregularidades. A redação estabelece como “ato regular de gestão” medidas tomadas de boa-fé. Na prática, é preciso agora comprovar que investimentos lesivos às finanças dos beneficiários foram feitos com a intenção de prejudicá-los. O órgão afirma que a norma visa assegurar “atuação garantista e republicana” e segue manual de melhores práticas de entidades internacionais. Críticos dizem, porém, que é uma blindagem após a Operação Greenfield, que investigou desvios nos fundos de pensão.
Em depoimento à Corregedoria da Procuradoria-Geral Federal (PGF), órgão vinculado à Advocacia-Geral da União (AGU) para assessoramento jurídico e representação judicial e extrajudicial de autarquias e fundações públicas federais, procuradores da Previc apontaram também ilegalidades no texto e o descumprimento de trâmites burocráticos para aprová-lo na diretoria colegiada. Dizem ainda ter sofrido pressão de um superior para antecipar conclusões técnicas sobre o tema.
As queixas foram apresentadas em uma investigação da PGF que culminou no afastamento cautelar do agora ex-procurador-chefe da Previc e autor da resolução Danilo Martins, contra quem foi aberto um processo administrativo disciplinar. Ele havia sido nomeado pelo ministro da Previdência Social, Carlos Lupi, em abril deste ano, já no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, e teve sua dispensa publicada no Diário Oficial da União no início de novembro.
Martins não quis se manifestar, alegando que o procedimento ainda está em curso. A Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais (Anafe) afirmou que integrantes da categoria “não são responsáveis pelos atos praticados pelos gestores públicos, conforme se verifica de inúmeras decisões judiciais e administrativas proferidas nesse sentido”.
Duas semanas após a resolução entrar em vigor, 34 ex-gestores dos fundos de pensão da Petrobras e da Vale denunciados pelo Ministério Público Federal por gestão temerária pediram o adiamento do julgamento de autos de infração a que respondem na Câmara de Recursos da Previdência Complementar. Argumentam que a nova regra deve ser aplicada retroativamente a eles. Entre os autuados, 15 são alvo da extinta Operação Greenfield, um desdobramento da Lava Jato que investigou desvios em fundos de pensão.
Os casos deles dizem respeito a aplicações de capital feitas no Fundo de Investimento em Participações (FIP) Sondas, criado em 2011 no governo da ex-presidente Dilma Rousseff para investir na Sete Brasil, estatal incumbida de fabricar equipamentos para a exploração de petróleo do pré-sal. De acordo com o MPF, os investimentos na Sete causaram prejuízo de R$ 5,5 bilhões aos fundos de pensão.
O relatório de uma CPI realizada em 2015 na Câmara dos Deputados indica que a Petros autorizou aporte no FIP Sondas sem submeter a proposta à sua assessoria de planejamento e investimentos. A diretoria-executiva aprovou a alocação de R$ 350 milhões no ativo, que não se converteram em retornos para os aposentados da Petrobras.
No julgamento da Diretoria Colegiada, a primeira instância da Previc, 15 diretores foram multados e inabilitados pelo período de dois a quatro anos. Membros de conselhos deliberativos e de comitês de investimentos sofreram multas.
O pedido dos réus foi tema da análise da Consultoria Jurídica do Ministério da Previdência Social, que alegou, em parecer, não haver na resolução a “tentativa de se criar excludentes de ilicitude”, mas determinou mudanças na redação original. No fim de novembro, foi publicada no Diário Oficial da União uma retificação, segundo a qual o artigo 230, que trata do ato regular de gestão, “não se aplica retroativamente aos processos em curso”.
Segundo os servidores, Martins atuou para pular procedimentos de análise de mérito relativos à resolução. Teria impedido, por exemplo, que uma minuta passasse pelo escrutínio da Coordenação de Normas, cujo chefe, o procurador Elthon Baier Nunes, havia manifestado ressalvas quanto à legalidade do texto.
De acordo com os relatos, o então procurador-chefe avocou para si a tarefa, apesar de colegas o alertarem que, como formulador da proposta, ele não deveria também ser o avalista dela. Martins justificou o ato pela urgência de aprovação da norma, dizendo se tratar de um pedido direto do diretor-superintendente, Ricardo Pena. As cobranças por celeridade em procedimentos internos eram feitas em reuniões presenciais e por meio de um grupo de WhatsApp em que procuradores debatiam questões ligadas ao trabalho.
Nos depoimentos, procuradores afirmam que a resolução exime gestores de responsabilidade por gestão temerária e ultrapassa os limites legais de atuação do órgão ao alterar normas sobre o tema, uma competência do Conselho Nacional de Previdência Complementar (CNPC). A Previc, na condição fiscalizadora do mercado, dizem, tem autonomia somente para formular instruções que disciplinam regras já existentes, mas não para criá-las.
Uma nota técnica dispensou a produção de análise de impacto regulatório, estudo que prevê possíveis efeitos de novas medidas no mercado. A justificativa foi de que o texto apenas consolidava normas já estabelecidas pelo CNPC. A Corregedoria da PGF refutou esta versão com o argumento de que a resolução prevê inovações legislativas e apontou para a falta de estudos técnicos no embasamento da decisão da nota.
Outra irregularidade apontada pelos servidores foi a falta de consulta pública ampla. A Previc enviou ofícios a seis associações de Previdência complementar com pedidos de sugestões para a redação. O prazo para que as contribuições fossem enviadas foi de apenas cinco dias. Segundo os corregedores, não há registro de nenhuma.
Procurada, a autarquia afirmou que “a atuação técnica, republicana e garantista da atual gestão da Previc tem gerado reações de parcela dos servidores, responsáveis pela atuação policialesca e persecutória verificada em governos anteriores, que ignoram o relevante papel orientativo e preventivo da supervisão baseada em riscos”.
O presidente da Unafisco, Kleber Cabral, diz que o discurso é uma tentativa de conquistar apoio do Palácio do Planalto à flexibilização de normas. “Está havendo uma tentativa de se fazer analogia entre as fiscalizações da Previc e excessos da Lava Jato. Isso é uma forma de ganhar adeptos dentro do governo. Para a fiscalização, a responsabilidade dos gestores é objetiva. Só se investiga se atos de gestão comprometem a higidez do fundo. Quem comprova se houve crime ou não é o Ministério Público.”
Ele também afirma que auditores da Receita Federal cedidos à Previc têm manifestado intenção de deixar seus postos no órgão por desconforto com a nova gestão.
Está havendo uma tentativa de se fazer analogia entre as fiscalizações da Previc e excessos da Lava Jato. Isso é uma forma de ganhar adeptos dentro do governo
Kleber Cabral, presidente da Unafisco
A Advocacia-Geral da União (AGU) confirmou a abertura de processo administrativo disciplinar contra Martins e afirmou que não pode divulgar detalhes do procedimento até a sua conclusão em razão de normas internas.
As controvérsias chamaram a atenção também do Tribunal de Contas da União, que, em outubro, enviou um ofício ao secretário-executivo do Ministério da Previdência Social, Wolney Queiroz, em que pede acesso ao parecer da pasta.
A resolução também pode ter impacto em processos que envolvem membros da atual cúpula da Previc. Os diretores de Normas, Alcinei Rodrigues, e de Fiscalização, João Paulo de Souza, foram autuados pela autarquia por atos cometidos quando estavam à frente de fundos de pensão.
O primeiro é acusado de irregularidades na Funcef, o fundo de pensão de funcionários da Caixa Econômica Federal, e foi denunciado pelo MPF, em 2019, por gestão temerária na Petros, no bojo da Greenfield.
O outro responde a processo na Previc por colocar em risco o pagamento a beneficiários do fundo de aposentadoria CELOS e de descumprir resolução do Fundo Monetário Nacional (CMN) na aplicação de reservas garantidoras, conforme revelou a Coluna do Estadão em maio.
Martins é investigado por arbitrar a favor de fundo de pensão privado
O ex-procurador-chefe da Previc Danilo Martins é investigado por prática de arbitragem privada a favor de um fundo de pensão em um litígio que tramita na entidade. Uma denúncia feita à Advocacia-Geral da União o acusa de se aproveitar do cargo para intermediar reuniões entre o corpo de procuradores federais do órgão e a advogada Ana Paula Raeffray, sua sócia na empresa Cames, especializada em mediação e arbitragem e que representava a Fundação Itaúsa em um caso de R$ 1 bilhão. Em nota, ela afirma não ter participação no processo administrativo aberto contra Danilo Martins nem conhecer o conteúdo da denúncia, já que o procedimento tramita em sigilo.
A Corregedoria da PGF encontrou o registro de uma audiência realizada por teleconferência de Ana Paula e do diretor-executivo da Fundação Itaúsa, Herbert Andrade, com integrantes da Previc na presença de Martins. De acordo com a ata, a reunião, realizada em julho, tinha como objetivo discutir possíveis interpretações de uma resolução do CNPC que estabelece regras para a reversão de valores para patrocinadores de fundos de pensão. Procurada pelo Estadão, a empresa informou que contratou o escritório Raeffray Brugioni Advogados para a prestação de “serviços jurídicos generalistas” neste processo.
A reversão de valores consiste na retirada de recursos dos fundos por suas entidades mantenedoras. Em consulta à Previc realizada em fevereiro, a Fundação Itaúsa demonstrou interesse em alterar o regulamento de um de seus planos de aposentadoria para permitir que este tipo de operação fosse realizado com mais flexibilidade, mas foi impedida por um parecer da consultoria jurídica do órgão.
O questionamento, segundo a empresa, “teve por objeto o esclarecimento de uma lacuna normativa quanto ao tratamento de reversão de valores do fundo previdencial para o patrocinador de plano de benefício de previdência complementar”. O processo foi encerrado em novembro com a resposta negativa da Previc.
Martins convocou para a reunião os dois procuradores responsáveis pelo veto e criticou a formulação da nota técnica em que o parecer se baseou. Segundo ele, o documento não deveria ter sido feito de forma conjunta pelas diretorias de Licenciamento e de Normas.
Ambos os servidores afirmaram, em depoimento à PGF, que não foram informados pelo então procurador-chefe do vínculo empresarial dele com os dois representantes privados e confirmaram que a advogada defendeu os interesses da Fundação Itaúsa. Herbert Andrade foi quem solicitou o encontro, por meio de uma mensagem de e-mail em que copiou Martins e Ana Paula.
Os corregedores concluíram que há indícios de conflito de interesses. Por isso, além do afastamento cautelar, foi expedida busca e apreensão dos dados telemáticos dos computadores e do celular funcional de Martins.
Um dos argumentos usados para embasar as medidas cautelares foi uma norma baixada pela AGU em 2019, quando o ministro do STF André Mendonça comandava o órgão, que proibiu advogados públicos de atuarem em causas de interesse privado.
A Cames não é o único empreendimento em que Martins e Ana Paula são sócios. Eles mantêm parceria em outros dois negócios com o ex-procurador federal Wagner Balera: a Auger Editora e o Instituto de Previdência Complementar e Saúde Suplementar (IPCOM). Ambas as empresas situam-se em um endereço na Avenida Arnolfo Azevedo, no bairro do Pacaembu, em São Paulo, o mesmo do escritório de advocacia de Ana Paula.
Resolução abriu a Previc para a atuação de advogados particulares
A resolução publicada em agosto trouxe uma inovação, além do “ato regular de gestão”: autorizou advogados particulares com a mesma especialização de Ana Paula a atuarem como mediadores na Câmara de Mediação, Conciliação e Arbitragem (CMCA) da Previc. Há ainda previsão de pagamento de honorários pelo serviço, que antes era exercido apenas por servidores da autarquia de forma gratuita. Martins é um dos autores da redação.
Uma das entidades procuradas na consulta pública foi o IPCOM, no qual Martins e Ana Paula são diretores e Balera é presidente. Este último foi quem recebeu o ofício. De acordo com a Corregedoria da PGF, não há registro de nenhuma contribuição de entidades externas.
Procurado, Balera disse que nenhuma de suas sociedades com Martins e Ana Paula envolve atuação como advogado. Professor da PUC-SP, ressaltou que dá aula sobre o tema há mais de 40 anos e costuma ser consultado para a formulação de leis e resoluções na condição de especialista.
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