Padres citados pela PF sobre golpe fazem parte de rede de atuação ultraconservadora dentro da Igreja

Juntos, eles somam quase 9 milhões de seguidores no Instagram, e alguns deles se destacam por relação com organizações internacionais de direita e políticos bolsonaristas; defesa do padre José Eduardo diz que acusações da investigação policial são ilações e outros padres citados não se manifestaram

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Foto do author Guilherme Caetano
Atualização:

BRASÍLIA – O relatório de 884 páginas da Polícia Federal relatando a investigação sobre a tentativa de golpe de Estado, que culminou no indiciamento de Jair Bolsonaro e outras 36 pessoas, cita quatro clérigos católicos e joga luz a uma ala conservadora na Igreja.

Além do indiciado padre José Eduardo de Oliveira e Silva (Osasco), o documento menciona os padres Paulo Ricardo de Azevedo (Cuiabá) e Genésio Lamounier Ramos (Anápolis), além de Gilson da Silva Pupo Azevedo (Santo Amaro), conhecido como frei Gilson, estrela pop do catolicismo na internet. Os três últimos não estão entre os formalmente acusados pela PF.

Padre José Eduardo de Oliveira e Silva, sacerdote da Diocese de Osasco, alvo da operação da Polícia Federal Foto: Reprodução/@pejoseduardo/Instagram

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Juntos, somam quase 9 milhões de seguidores no Instagram, base formada por anos de pregação em plataformas de streaming, cursos e palestras. Alguns deles se destacam por relação com organizações internacionais de direita e políticos bolsonaristas.

José Eduardo é citado 74 vezes no relatório da PF. Ele atuou, segundo os investigadores, junto do ex-assessor para assuntos internacionais de Bolsonaro, Filipe Martins, e do advogado Amauri Saad na elaboração de uma minuta de golpe de Estado. O padre esteve em Brasília entre novembro e dezembro de 2022 na construção do documento que embasaria a fundamentação da ruptura democrática. A defesa do padre diz que as provas apresentadas “não corroboram as ilações contra ele contidas no relatório”.

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Em 3 de novembro daquele ano, José Eduardo enviou a Frei Gilson via WhatsApp uma “espécie de oração ao golpe”, de acordo com a PF, pedindo que todos os brasileiros, católicos e evangélicos, incluíssem em suas orações os nomes do então mnistro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, e de outros dezesseis generais, “para que Deus lhes dê a coragem de salvar o Brasil, lhes ajude a vencer a covardia e os estimule a agir com consciência histórica e não apenas como funcionários público de farda”.

Sucesso de audiência – seu canal no YouTube tem 5,7 milhões de inscritos –, Gilson atraiu meio milhão de pessoas na entrevista que deu em outubro ao canal do estúdio Brasil Paralelo. Gilson também vem participando e divulgando eventos da Canção Nova, grupo conservador da Igreja Católica que tem proximidade com a Brasil Paralelo.

A relação entre ambas, no entanto, chamou a atenção do Observatório da Comunicação Religiosa (OCR), ligado ao Diretório da Comissão de Comunicação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O OCR emitiu uma nota em setembro criticando a parceria entre a TV Canção Nova (Estúdio Anuncia-me) e o estúdio.

O impulsionamento de audiência da Brasil Paralelo é um dos exemplos. Padres conservadores têm lançado mão de cursos, oficinas, palestras e até de uma plataforma de streaming para difundir suas ideias e alcançar maiores públicos. No site Fé Explicada, por exemplo, José Eduardo ensina “confissão e moral cristã”. Na Lumine, a “Netflix católica”, Paulo Ricardo está à frente de um documentário sobre o “sentido da vida”.

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Paulo Ricardo é definido pelo próprio José Eduardo como militante contra a descriminalização do aborto. Em especial no capítulo sobre a elaboração do decreto golpista, o relatório da PF destaca a relação de proximidade entre José Eduardo e Filipe Martins, que trabalhava no Palácio do Planalto.

Em julho de 2020, José Eduardo enviou um e-mail ao assessor de Bolsonaro dizendo conhecer a posição do então presidente “em defesa da vida e contra o aborto” e que, por isso, ele e o padre Paulo Ricardo, “que estamos há anos engajados no movimento pró-vida e conhecemos bem o desenvolvimento dos dispositivos facilitadores do aborto em nossa nação”, gostaríam de ter uma conversa privada com o presidente sobre o assunto.

Alguns dos párocos mantêm uma relação próxima com lideranças bolsonaristas. Além de ter comparecido à posse de Bolsonaro, José Eduardo se encontrou algumas vezes com parlamentares como Eduardo Bolsonaro, Chris Tonietto e Damares Alves. Já Paulo Ricardo, numa visita ao ideólogo da direita brasileira, Olavo de Carvalho, nos Estados Unidos, em 2015, tirou uma foto com o guru segurando uma arma de fogo.

O padre Genésio, por sua vez, foi até o Palácio da Alvorada em dezembro de 2022 para rezar com Bolsonaro, em meio à turbulência pela qual vivia o Brasil com manifestações em todo o País pedindo ruptura democrática e intervenção militar. No dia seguinte à visita ao então presidente, Genésio incitou bolsonaristas em um acampamento golpista a pararem o País”.

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“Nos grupos, (é para) pedir que venham para Brasília, para o QG (do Exército). Ocupemos todas as ruas de Brasília. As Forças Armadas são a última linha de defesa entre o comunismo e a sociedade de bem. Não só caminhoneiros, mas todo mundo que puder parar o Brasil e vir para Brasília, agora é a hora (...) A nossa meta é a liberdade, é colocar na cadeia bandidos. (Criminosos), ou mudem de vida, ou mudem de País”, discursou Genésio.

Os investigadores identificaram que José Eduardo tinha o contato de Bolsonaro salvo em seu telefone desde 2013 — época em que o padre estreitou laços com movimentos políticos. Em novembro daquele ano, ele palestrou ao lado do espanhol Ignacio Arsuaga, presidente da HazteOir, a que chamou de “célebre”, em um workshop organizado sobre “como construir com êxito um movimento social”.

A HazteOir é uma fundação voltada para a formação de ativistas de pautas conservadoras, como a criminalização do aborto e da eutanásia. Em 2013, a HazteOir fundou a CitizenGO, organização dedicada a promover petições e abaixo-assinados para causas da direita. Em março de 2014, José Eduardo publicou uma foto em seu Instagram entregando “milhares de assinaturas recolhidas pela CitizenGO” nas mãos do então deputado federal Izalci Lucas. Em 2020, ele voltou a divulgar uma campanha da empresa.

Paulo Ricardo também já ajudou a divulgar a petição da organização espanhola. “Ideologia de gênero na educação? Não, obrigado! Assinem a petição”, publicou em sua conta no Twitter em 21 de março de 2014.

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Tanto a HazteOir quanto a CitizenGO são mencionadas em um estudo elaborado pelo Fórum Parlamentar Europeu para os Direitos Sexuais e Reprodutivos sobre “financiadores extremistas religiosos” contra os direitos humanos para a sexualidade e saúde reprodutiva na Europa, lançado em 2021. O documento detalha como atores de todo o mundo, inclusive oligarcas russos, vêm financiando iniciativas anti-gênero no continente.

O Estadão procurou todos os párocos, mas não conseguiu contato com Frei Gilson e o padre Genésio, portanto o espaço segue aberto para manifestação. Paulo Ricardo, por sua vez, não retornou.

Já o advogado de José Eduardo, Miguel Vidigal, diz que “o relatório da Polícia Federal retratou a verdade sobre a participação do padre José Eduardo nos supostos atos golpistas: ficou evidente que as provas apresentadas não corroboram as ilações contra ele contidas no relatório”.

“O religioso não teve qualquer participação em atos que visassem a quebra da Ordem Constitucional, não participou da escrita de qualquer minuta e nem poderia, pois lhe falta capacidade jurídica para tanto. Também não esteve em qualquer acampamento ou encontro que tivesse por intuito aplicar um golpe de Estado no país. Suas idas a Brasília (que ocorrem desde 2013, quando voltou a residir no país) se limitaram a fazer atendimentos espirituais e a rezar, nada além disso”, afirma o advogado.

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