O Supremo Tribunal Federal (STF) define a pauta de julgamentos de maneira discricionária, informal e individualista, permitindo que os ministros decidam, na maioria das vezes, quais casos serão julgados e quando. A conclusão é do grupo de pesquisa Constituição, Política e Instituições (COPI) da USP, que revelou que a falta de regras objetivas, juntamente com fatores externos, influencia o trâmite processual na Corte. Como resultado, alguns processos são levados à sessão de julgamento em poucos dias, enquanto outros aguardam décadas.
Para juristas e cientistas políticos ouvidos pelo Estadão, embora o próprio Supremo tenha promovido reformas nos últimos anos, a falta de critérios rígidos e transparentes na análise dos processos que chegam à instituição ainda persiste, tornando a seleção das demandas a serem julgadas imprevisível e seletiva; o que, por sua vez, afeta a legitimidade e a reputação da Corte, bem como a percepção de acesso à justiça pela população.
O estudo analisou o tempo total de 1.529 processos desde sua entrada oficial no sistema do Supremo até a sessão de julgamento no plenário físico, considerando todos os casos que foram pautados entre 2013 e 2019, incluindo aqueles iniciados antes desse período. Dentre eles, a ação mais rápida tramitou em apenas 2 dias, enquanto a mais demorada levou 41 anos. Também foram realizadas entrevistas com atores-chave, incluindo 5 ministros do STF, 17 assessores de diferentes gabinetes e advogados com trânsito na Corte
“O processo de decisão do STF possui várias particularidades que não se explicam apenas pelos tipos de processos, em que alguns são naturalmente mais rápidos do que outros. É a ausência de regras e prazos objetivos no próprio Supremo, somada a um conjunto de fatores informais, como as preferências individuais dos ministros, a preocupação com a reputação, advogados de renome, partes envolvidas e cobertura na mídia, que desempenham um papel muito relevante para que um processo seja selecionado para julgamento em detrimento de outro. Então, sim, atualmente o Supremo julga, na maioria dos casos, o que e quando quiser”, diz Luiz Fernando Esteves, pesquisador da USP e professor do Insper, responsável pela pesquisa.
Passo a passo da pauta
Conforme explica o pesquisador, quando um processo chega ao STF, ele é distribuído a um relator, que decide quando o caso está pronto para ser julgado. Após a liberação, cabe ao presidente do STF determinar o momento em que a demanda será incluída na pauta de julgamentos do plenário presencial, entre aquelas liberadas pelos relatores. Ambos podem tomar essas decisões sem um prazo estabelecido em lei. Durante o julgamento, qualquer ministro pode ainda interromper o processo com um pedido de vista, o que lhe concede mais tempo para analisar a matéria, adiando assim a resolução. Na prática, portanto, o encaminhamento de um processo para a sessão de julgamento não garante que ele será julgado. Se for adiado, a ação dependerá novamente do presidente para ser pautada no plenário.
O grande volume de processos que chega ao STF, decorrente do desenho constitucional brasileiro, não é, por si só, um fator que explica ou justifica o elevado grau de liberdade e a ausência de critérios mais objetivos e transparentes na gestão da pauta de julgamentos, conforme explica Ana Laura Pereira Barbosa, pesquisadora do Supremo em Pauta, da FGV-SP. A jurista cita o exemplo da Suprema Corte Americana, que, apesar de também receber uma grande quantidade de processos, seleciona anualmente quais casos serão decididos naquele ano judicial.
“São modelos muito diferentes, mas é só um exemplo de que existem formas de enfrentar o problema. Todos os tribunais vão lidar com uma sobrecarga de processos”, diz.
Na avaliação do jurista e pesquisador Diego Werneck Arguelhes, embora os processos cheguem ao Supremo de forma igual, eles percorrem caminhos e tempos diferentes dentro da instituição. O jurista explica que a distribuição desigual de poder dentro da Corte, especialmente nas figuras do relator e do presidente, contribui para uma condução individualista, seletiva e imprevisível, desmantelando dois mitos: o de que o Tribunal não escolhe o que vai julgar e o de que, uma vez provocado, o Supremo é obrigado a se manifestar.
Como exemplo, Werneck cita o caso da ação que pede a descriminalização do aborto nas primeiras 12 semanas de gestação. O processo foi distribuído para Rosa Weber em 2017, mas apenas no ano passado, em seu último ano na Corte, quando também assumiu a presidência do Tribunal, a ministra liberou o caso e votou pela descriminalização. O jurista pontua que o hiato temporal pode ser explicado por um cálculo político, considerando que a formação de um Congresso conservador após a eleição do então presidente Jair Bolsonaro (PL) poderia causar retaliações ao Tribunal. Não por acaso, tanto o presidente quanto o relator fizeram parte da corrente vencedora na grande maioria dos casos analisados.
Para o professor de Direito Constitucional da USP, Conrado Hübner, o processo decisório da Corte é agravado não apenas pela figura do relator e do presidente, mas também pelo uso dos poderes individuais dos ministros, o que, em alguns casos, gera insegurança jurídica. “A pauta do Supremo é conduzida por absoluta discricionariedade, se não arbitrariedade. A máxima é que quando um não quer, onze não julgam. Isso gera a imprevisibilidade sobre se ou quando vai se decidir um caso. Na prática, o Supremo decide o que e quando quiser”, diz.
O jurista cita, como exemplo, a atuação do ministro Luiz Fux no processo que discutia o pagamento do auxílio-moradia para magistrados. Em 2014, Fux, que era o relator do caso, deferiu monocraticamente uma liminar, concedendo o benefício a integrantes do Judiciário, Ministério Público, defensorias públicas e tribunais de contas. No entanto, o ministro não submeteu a questão ao plenário e revogou a liminar apenas em 2018, quatro anos depois. “Um único ministro conseguiu deliberar sozinho sobre a pauta do Supremo e custou milhões para o Estado brasileiro”, diz.
De acordo com Werneck, o ritmo dos processos no Tribunal é amplamente influenciado pela ausência de prazos claros e objetivos, especialmente no caso dos relatores e presidentes, e pela falta de cumprimento das regras definidas pelo próprio Regimento Interno do STF, como os prazos para pedidos de vista, que há até pouco tempo não eram respeitados. O jurista destaca a necessidade de que o próprio Supremo crie regras de autorregulação em seu regimento, com mecanismos e procedimentos capazes de evitar que os ministros deixem de respeitar prazos pré-estabelecidos.
“Essa é uma particularidade do Supremo brasileiro: não há prazo para julgar. E não há quem faça valer que os ministros cumpram os prazos vigentes. Assim, o Supremo pode deixar de enfrentar um tema se o assim desejar. Eles [os prazos] não são vistos no Supremo como algo que poderia gerar qualquer tipo de consequência para o ministro por ter descumprido, como uma infração, a exemplo do que ocorre em instâncias inferiores. Talvez aqui, como em outros temas, o Tribunal se autorregular para ter menos liberdade pudesse ser positivo. Como, por exemplo, prazos que possam definir quando o relator irá liberar o caso”, diz.
Na mesma linha, Hübner ressalta que a atuação dos integrantes da Corte, seja por meio do relator, do presidente ou dos ministros individualmente, destoa da concepção de um tribunal colegiado, que, em tese, deveria funcionar de maneira coletiva e técnico-jurídica. “Os seus integrantes agem de forma absolutamente individual, descoordenada, sem critérios e totalmente discricionária”, aponta.
Fatores externos influenciam andamento processual
As entrevistas realizadas em reserva pela pesquisa, com ministros, assessores de diferentes gabinetes e advogados, revelaram uma série de fatores externos que impactam o andamento e a prioridade dos processos. Entre eles estão a cobertura da mídia; a preocupação dos ministros com sua reputação pública e interna; o diálogo entre magistrados da Corte, muitas vezes por meio de canais e agendas informais de comunicação; e a presença de advogados de renome que têm acesso aos ministros, frequentemente por meio de despachos.
O instituto do despacho, por exemplo, apesar de ser previsto em lei como um direito dos advogados, não possui regulamentação sobre como deve operar, conforme explica Juliana Cesario Alvim, professora da Central European University, na Áustria, e da UFMG. Na prática, segundo a jurista, os despachos ocorrem de maneira informal e privada, a critério de cada ministro, geralmente sem a participação da outra parte do processo — algo que não acontece em tribunais de outros países. Em sua avaliação, a falta de transparência faz com que essas audiências privadas possam distorcer a equidade no processo.
Já Hübner destaca os jantares promovidos por escritórios de advocacia e instituições privadas, onde advogados e ministros se reúnem. Em sua avaliação, esses eventos acabam se tornando uma forma informal de construção de pautas.
“Esses advogados constroem artificialmente muitas oportunidades de encontro para a construção de relações quase pessoais com os ministros. Esses jantares e fóruns não acontecem apenas em Portugal [em referência ao Fórum de Lisboa promovido pelo ministro Gilmar Mendes]. Portugal é só a ponta do iceberg; eles ocorrem em Brasília e em outras partes do Brasil o tempo todo. Obviamente, quando um advogado conhece pessoalmente o ministro, frequenta ou é frequentado por ele e tem um caso de seu cliente, é claro que, na pilha de casos que o ministro tem para distribuir no seu gabinete, esse caso vai para o número um da fila. É óbvio que esse caso fura a fila quando se tem um advogado influente”.
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Falta de procedimentos e reformas
De acordo com o professor da USP Virgílio Afonso da Silva, que coordena o COPI na mesma instituição, a influência externa na construção de pauta poderia ser mitigada com regras mais rígidas, objetivas e transparentes.
“Quando as coisas são discricionárias, a falta de critério é o terreno mais fértil para que relações de poder e processos informais de influência cresçam. É impossível viver em um mundo em que as pessoas não tenham contato, mas as regras de uma instituição devem ter como objetivo minimizar ao máximo esse tipo de poder informal”, diz.
Não é à toa que, nos últimos anos, o STF tem promovido mudanças no regimento interno com o objetivo de aprimorar a organização das pautas. Entre as principais mudanças está a alteração no prazo para pedidos de vista, que passou de 30 para 90 dias úteis. Nesse período, o ministro deve devolver o processo para a continuação do julgamento. Caso não ocorra a devolução dentro desse prazo, o processo é automaticamente reincluído na pauta. Além disso, foi estabelecido que as liminares, um tipo de decisão provisória, decididas monocraticamente devem ser submetidas ao plenário para referendo.
Também foram ampliadas as competências do Plenário Virtual (PV), o que limitou o poder do presidente. Diferentemente do plenário físico, nessa modalidade em que os ministros remetem seus votos de forma online por meio de uma plataforma, o relator pode escolher quais processos serão julgados e em qual momento, independentemente da vontade e do crivo do presidente. No entanto, tanto o presidente quanto os demais ministros têm a prerrogativa de pedir destaque, um mecanismo que transfere o processo para o plenário físico. Uma vez lá, como já visto, o caso precisará novamente do poder do presidente para ser chamado para julgamento.
Recentemente, o atual presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, pediu destaque para o caso referente à descriminalização do aborto, o mesmo que Rosa Weber havia pautado e votado. Agora, o processo retornou para a sessão de julgamento do plenário e dependerá de Barroso decidir se pautará o caso ou não.
Na avaliação dos juristas ouvidos pelo Estadão, embora as mudanças representem uma autocrítica por parte da Corte, elas não trouxeram resultados significativos, já que todo a dinâmica continua caracterizado pelo individualismo e discricionariedade, seja dos ministros, que permanecem podendo “bloquear” uma pauta por meio do pedido de vista ou destaque, seja pela atuação individual do relator ou do presidente.
Legitimidade
Para o jurista Rubens Glezer, um dos coordenadores do Supremo em Pauta e professor da FGV-SP, a liberdade presente na pauta não é um problema por si só. Em sua avaliação, é o uso indevido dos poderes pelos ministros que cria a percepção de que o Tribunal escolhe quais processos serão julgados e quando, afetando tanto a legitimidade quanto a reputação da Corte.
“Se a construção da pauta passa a ser constantemente percebida como um lugar de má-fé, de catimba constitucional, de distorção do interesse público, isso afeta a autoridade do Supremo e sua reputação. A ideia de que os ministros não têm que ser levados a sério e que suas ordens não têm que ser respeitadas deslegitima a instituição. Isso viabiliza um futuro próximo em que as decisões do Tribunal possam ser descumpridas com mais facilidade”, diz.
Virgílio completa, alertando que, além de impactar a imagem do Tribunal, esses problemas institucionais se tornam ainda mais graves em um cenário de polarização política, onde a ausência de regras mais transparentes e objetivas passa a servir como munição contra a própria instituição.
“As pessoas, obviamente, se perguntam por que essa decisão é hoje, e não aquela que entrou 10 anos antes. Como não tem critério, não se consegue responder. Ninguém sabe quem vai decidir o quê e quando. Então, a sensação, e não é só uma sensação, é de que o STF decide os casos que ele quer na hora que ele quiser. E isso é um problema”.
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