O Congresso não tem dado anteparo político ao Supremo Tribunal Federal (STF), que, por sua vez, tem sido a instituição mais resistente a uma presente corrosão das estruturas democráticas. A avaliação é do doutor em ciência política Fernando Abrucio, professor e pesquisador da FGV.
Segundo ele, o caso Daniel Silveira expõe duas estratégias do presidente Jair Bolsonaro que convivem: de um lado, a eleitoral, de alimentar um radicalismo crescente entre o eleitorado e criar confusão na opinião pública, para colher os frutos políticos; de outro, diz Abrucio, é parte de uma estratégia de “autocratização do poder político” no Brasil.
De acordo com Abrucio, a pena dada a Silveira foi "um pouco exagerada" e deu argumentos ao presidente. "O melhor voto foi o do ministro André Mendonça: dar uma pena criminal branda, mas retirar os direitos políticos. Talvez fosse mais difícil para o Bolsonaro sustentar o argumento de que houve exagero da Corte se tivesse sido essa a decisão."
“Todos os ministros da Corte sabem que há uma estratégia de poder, mas a questão é ter a capacidade de responder. Eles não estão demorando a tomar decisões apenas porque acham que é uma cortina de fumaça de Bolsonaro, e sim porque precisam de algum anteparo político”, afirma Abrucio.
“Há um certo grau de autocracia que vem desde o primeiro dia do mandato que a sociedade e as instituições não conseguiram controlar. É preciso entender esse dilema”, diz o especialista, em entrevista ao Estadão.
A tensão entre STF e Bolsonaro não é uma novidade. O que há de peculiar nesta crise atual e o que ela implica para o processo eleitoral?
Das instituições, o STF é a que mais gerou problemas para Bolsonaro. Essa guerra foi contínua e, neste ano, vai escalar por uma razão simples: a eleição.
O primeiro interesse de Bolsonaro é eleitoral: ele constrói a imagem de que o STF o persegue e é formado por gente que não defende os interesses do Brasil, para dizer o mínimo. A tendência é de que Bolsonaro faça um tipo de campanha eleitoral de respostas a esse eleitor populista de extrema direita, mas que também crie confusão para o resto da opinião pública. Uma parte da estratégia do caso Daniel Silveira é agradar a seu eleitor e criar confusão.
Mas há uma segunda estratégia que é de poder. O projeto político de Bolsonaro é transformar o Brasil em uma Hungria. É um processo de “orbanização” (referência ao primeiro ministro húngaro Viktor Orbán). Significa, primeiro, criar uma eleição na qual ele só pode ganhar. Segundo, após a eleição, se eleito, reduzir mais ainda os controles democráticos. O projeto estratégico dele é ganhar a eleição, escolher mais dois ministros e fazer o impeachment dos ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. Com isso, ele indicaria seis dos 11 ministros do Supremo.
Uma parte dos ministros do Supremo defende a ideia de deixar a poeira baixar, no caso Daniel Silveira, justamente para evitar cair na estratégia eleitoral de Bolsonaro. Atrasar uma resposta sobre o caso significa que o STF, como instituição, não responde ao que o senhor chama de "estratégia de poder" de Bolsonaro?
Todos os ministros da Corte sabem que há uma estratégia de poder, mas a questão é ter a capacidade de responder. Eles não estão demorando a tomar decisões apenas porque acham que é uma cortina de fumaça de Bolsonaro, e sim porque precisam de algum anteparo político. O Congresso não está dando anteparo político ao STF, e os ministros sabem qual é o limite do poder deles. No que se refere a esse caso, o limite provavelmente é a retirada dos direitos políticos do Daniel Silveira. A punição dada, do ponto de vista penal, também me parece um pouco exagerada.
O melhor voto foi o do ministro André Mendonça: dar uma pena criminal branda, mas retirar os direitos políticos. Talvez fosse mais difícil para o Bolsonaro sustentar o argumento de que houve exagero da Corte se tivesse sido essa a decisão. Os ministros sabem que há uma estratégia, a questão é saber como reagir.
Há um certo grau de autocracia que vem desde o primeiro dia do mandato que a sociedade e as instituições não conseguiram controlar. É preciso entender esse dilema.
A posição do atual Congresso sobre Bolsonaro minimiza, portanto, a capacidade de reação do STF?
Não se trata só de adiar a decisão para evitar estratégia eleitoral, mas porque os ministros do STF não são, sozinhos, capazes de reagir ao bolsonarismo, pois ele ficou muito forte com a compra do Congresso via orçamento secreto.
Há um projeto que está pouco a pouco corroendo as estruturas democráticas do país. O resto é acreditar em Papai Noel. Acreditar que o Bolsonaro será controlado pelo Arthur Lira (presidente da Câmara), que não tem conseguido nem gaguejar para comentar o assunto? Com mais de R$ 30 bilhões de orçamento secreto e emendas, como o Estadão tem revelado, ele comprou metade da Câmara federal e um terço do Senado. Não tem mais um Rodrigo Maia (ex-presidente da Câmara) no Congresso. O máximo que tem é Rodrigo Pacheco (presidente do Senado), que não é bolsonarista, mas tem capacidade de reação reduzida.
O Congresso, em boa parte, está dominado, com algum foco de resistência no Senado. O Ministério Público Federal está praticamente dominado. Polícia Federal, dominada. CGU, dominada. O que sobra? O Supremo e os Estados. Mas, neste momento, os Estados, como o Bolsonaro, estão em processo eleitoral. Ganhando ou perdendo, ele vai ter vitórias e derrotas nos Estados. E, se ele ganhar, na lei ou na marra -- e na marra é possível de ocorrer -- ele vai voltar a usar a estratégia Doria: tentar desgastar completamente os governadores que não estão ao seu lado. O tamanho da rejeição de João Doria tem a ver com Bolsonaro.
O que quer dizer quando fala que “ganhar na marra” é possível?
Bolsonaro joga com plano A e plano B. Se ele perder a eleição, o discurso de que a eleição foi roubada vai mobilizar uma parte importante do eleitorado. Se ele mobiliza uma grande parte da população, com pessoas cada vez mais armadas…cria-se uma situação que torna muito difícil a posse, pode gerar uma confusão. O que nos salvaria não seria o Supremo, mas a geopolítica internacional. A esquerda talvez precise dos Estados Unidos para assumir a Presidência da República no Brasil, porque nos EUA circula o comentário de que não se pode ter uma nova Venezuela na América Latina.
Na melhor das hipóteses, teremos muita confusão, violência, mas o vencedor assume. Bolsonaro está disposto a negociar esse custo político e social. Essa é uma eleição completamente atípica, mais parecida com uma guerra. Talvez, se ele perder, ele terá de fazer um armistício, para salvar a si e os seus próximos. A eleição de 2022 não é a eleição de 2018.
Como vê, neste contexto, a reunião de Bolsonaro com o WhatsApp?
Temos discussões na Europa e nos EUA sobre big tech. Em nenhum desses lugares, o presidente chamou o dono da empresa na sua sala. Não dá para imaginar o (Joe) Biden ou o Boris Johnson ou (Emmanuel) Macron chamarem o presidente ou diretor de uma empresa para falar sobre a estratégia da companhia, quem faz isso é o (Vladimir) Putin. O que o Bolsonaro fez hoje com WhatsApp é típico do Putin ou do Orban. Um presidente democrático não chama diretor de empresa para discutir seu plano de negócios frente à estratégia eleitoral do seu presidente.
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