Quais as consequências jurídicas do vazamento de supostas conversas entre o então juiz federal Sérgio Moro e integrantes do Ministério Público Federal, como o procurador da República Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba? O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado e preso pela Lava Jato, pode ser solto? Para responder estas e outras questões, o Estado ouviu especialistas em direito penal e constitucional. Segundo eles, é pouco provável que haja anulação de processos e condenações da Lava Jato ao longo dos últimos cinco anos.
As conversas vazadas mostram que Moro teria orientado investigações da Lava Jato por meio de mensagens trocadas no aplicativo Telegram. O site afirmou que recebeu de fonte anônima o material. O The Intercept tem entre seus fundadores Glenn Greenwald, americano radicado no Brasil que é um dos autores da reportagem. O conteúdo das conversas, segundo o site, sugere que Moro orientou investigadores, sugeriu mudança da ordem de fases da operação, deu conselhos, forneceu pistas e antecipou decisão a Dallagnol.
Foram entrevistados os advogados criminalistas João Paulo Martinelli – doutor em direito penal –, Guilherme Amorim – doutor em direito constitucional –, e Rui Celso Reali Fragoso, que já presidiu o Instituto dos Advogados de São Paulo, e concedeu entrevista à Rádio Eldorado para tratar do tema.
1. Um juiz pode aconselhar procuradores do Ministério Público Federal sobre como deveriam proceder na condução do processo?
João Paulo Martinelli: O juiz não pode dar dicas nem orientar nenhuma das partes, seja a acusação ou a defesa. Tem de ser imparcial e manter a mesma distância da defesa e da acusação. Não pode ter o ímpeto de produzir provas nem determinar como os procuradores devem proceder quando ele próprio vai julgar o caso. Isso demonstra um pré-julgamento. Quem tem obrigação de produzir provas da culpa é a acusação, não o juiz, que tem de permanecer distante.Rui Celso Reali Fragoso: O juiz deve manter a imparcialidade, não orientar a condução das investigações e nem dar opinião sobre o que um procurador deve fazer. Essa possível combinação entre o procurador que faz a acusação e o magistrado que a recebe é inaceitável. Guilherme Amorim: Não, enquanto juiz, que é a autoridade que preside a instrução processual a qual se destina a colheita das provas do processo, ele não poderia fazê-lo. A Constituição Federal assegura a imparcialidade do juiz no devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.
2. As conversas reveladas podem ser usadas para embasar pedidos de anulação de condenações realizadas pela Operação Lava Jato? Como a troca de mensagens pode afetar o caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva?
João Paulo Martinelli: As conversas foram obtidas de maneira ilícita e não havia autorização judicial. Provas ilícitas não poderiam ser utilizadas no caso de processo contra o Dallagnol e o Moro porque seria um caso de incriminar alguém. Agora, no caso de beneficiar a defesa, a prova ilícita pode ser usada. Rui Celso Reali Fragoso: Se a conversa for em relação a um caso concreto, isso pode fazer com que o caso seja analisado em instância superior. Os advogados podem aproveitar a situação em razão da nítida parcialidade, pedindo anulação do processo pela suspeição que poderia ter ocorrido entre o magistrado e o procurador. Isso não é fácil de ser comprovado, mas é um elemento forte que pode ser utilizado.
Guilherme Amorim: Sim. A defesa certamente deve embasar um pedido de anulação do processo. O fato de a origem do vazamento ser ilícito não significa que ele não deve ser aproveitado, já que a defesa tomou conhecimento disso quando veio a público. Moro deverá ser declarado suspeito e poderá ser recusado por uma das partes se tiver aconselhado a outra. Na medida em que estas conversas revelam que ele, como autoridade que presidia a instrução processual, tenha auxiliado uma das partes com orientação sobre como proceder, isso pode colocá-lo como suspeito e levar à nulidade absoluta do processo.
3. Como a lei prevê que se dê a comunicação entre juiz e procuradores/promotores?
João Paulo Martinelli: A comunicação tem de ser nos autos dos processos, até para permitir o contraditório e para que a outra parte possa se manifestar. Toda comunicação entre uma parte e o juiz tem que ser com conhecimento da outra parte. Guilherme Amorim: A comunicação se dá por meio dos autos, por petição, por audiência ou por despacho pessoal. Ainda não chegamos, nesse processo de digitalização que ocorre no Judiciário, a uma forma de regulamentação que permita a comunicação por meio de aplicativos de mensagens. Não é normal essa conversa, sobretudo quando é sabido que existia uma hostilidade com os advogados da causa. Chama a atenção quando Sérgio Moro admite com naturalidade e tranquilidade que trocava mensagens com os procuradores.
Rui Celso Reali Fragoso: A conversação entre magistrado e procurador, entre magistrado e advogado, pode ocorrer, mas não sobre a forma de condução de processo. Isso é inadmissível, seja uma conversa por telefone, seja por aplicativo.
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