Pesquisa de ‘estratégia eleitoral’ por R$ 2 milhões pagos pelo governo entra na mira do TCU

O NetLab, da UFRJ, foi contratado pelo Ministério da Justiça para pesquisas sobre relações de consumo de cidadãos na internet, mas bolsistas recebem para ‘investigar anúncios políticos’ e ‘estratégias de campanhas’; governo e pesquisadores afirmam não haver desvio de finalidade

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Atualização:

BRASÍLIA – O governo federal pagou R$ 2,3 milhões para um grupo de pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) “investigar anúncios políticos nas redes sociais” e sistematizar impactos deles nas “estratégias das campanhas eleitorais de 2018 a 2024″. O ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), Augusto Nardes, determinou, no último dia 27, a abertura de uma investigação preliminar, envio de informações e depoimentos de gestores envolvidos na celebração de convênio com o Ministério da Justiça, que banca a pesquisa.

Criado em 2013, o Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais (NetLab) se dedica a “diagnosticar o fenômeno da desinformação digital e suas consequências sociais no Brasil”. Nos últimos anos, tornou-se referência em levantamentos sobre desinformação disseminada por políticos e movimentos à direita no espectro político.

Prédio do Tribunal de Contas da União. Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADAO

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A decisão do TCU foi tomada depois que a área técnica da Corte apontou “possibilidade de ocorrência de desvio de finalidade”. A dúvida é se o NetLab usou para estudos com verniz político e eleitoral a verba pública que recebeu para fazer pesquisas úteis à defesa de todos os consumidores brasileiros usuários de internet.

Procurados, o grupo de pesquisa e a pasta negaram desvio de finalidade e garantiram que levantamentos sobre política e eleições estão dentro do escopo dos acordos assinados (leia mais abaixo).

A suspeita surgiu a partir de uma suposta discrepância entre o compromisso que o NetLab firmou com o governo para receber recursos do Ministério da Justiça e as atividades dos bolsistas financiados com a verba. O caso foi levado ao TCU por congressistas da oposição.

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O convênio aprovado em agosto de 2023 foi pago com verbas do Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD) e tinha como objetivo a pesquisa sobre “indústria da desinformação e seu impacto nas relações de consumo no Brasil”. O FDD é da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), do Ministério da Justiça, chefiada pelo ex-deputado Wadih Damous (PT).

Wadih Damous, ex-deputado e secretário de defesa do consumidor no Ministério da Justiça. Foto: Will Shutter/Câmara dos Deputados 

A reportagem analisou os subcontratos firmados entre o NetLab e os bolsistas que receberam de R$ 1,2 mil a R$ 13 mil por mês – em média, R$ 5,5 mil. Todos têm uma lista de “atividades principais” e nenhuma delas têm, textualmente, relação direta com a defesa do consumidor. A maioria traz observações sobre política e eleições.

Das 33 bolsas que consumiram R$ 1,4 milhão da verba do Ministério da Justiça – o restante foi para compra de equipamentos e infraestrutura –, 29 foram para pesquisadores escalados para “investigar anúncios políticos nas redes sociais e seu impacto, sistematizando as estratégias das campanhas eleitorais de 2018 a 2024 no Facebook, Instagram, Twitter e Telegram” e para “analisar como as ferramentas de desinformação nas redes sociais são utilizadas para atacar parlamentares femininas e negras”.

A bancada do partido Novo na Câmara considera que o recurso que deveria estar sendo usado para pesquisas que protejam os consumidores estava sendo aplicado em estudos com finalidade política e eleitoral. O ministro Augusto Nardes determinou a continuidade da apuração com novas diligências e apresentação de explicações por parte de representantes da UFRJ e do Conselho Federal Gestor do Fundo de Defesa de Direitos Difusos.

NetLab aumentou receitas no governo Lula

De 2020 a 2022, as receitas do NetLab para financiar pesquisas somaram R$ 1,2 milhão, sendo R$ 50 mil do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e o restante de ONGs internacionais. Com a mudança de governo, houve um salto na arrecadação. De janeiro de 2023 ao primeiro semestre deste ano foram R$ 8,3 milhões. Do montante, R$ 2 milhões saíram do Ministério da Justiça e outros R$ 300 mil foram repassados via Ministério das Mulheres.

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A principal fonte de receita do grupo, no entanto, são entidades filantrópicas internacionais. Os outros R$ 6 milhões recebidos pelo NetLab no último ano e meio foram enviados por organizações como a Open Society Foundation, fundada pelo bilionário húngaro-americano George Soros, a OAK Foundation e a Ford Foundation.

Relatórios do NetLab se tornaram uma referência no estudo das redes de desinformação criadas e nutridas por grupos e políticos à direita. O grupo de pesquisa também se destacou na defesa do chamado PL das Fake News, que trata, entre outras coisas, de regulação das big techs.

Os parlamentares do Novo miram o NetLab porque acusam o laboratório acadêmico de ativismo político com dinheiro público e alegam direcionamento nas pesquisas e nos compromissos que firmam com organismos internacionais para obter financiamentos.

Na documentação enviada à ONG Climate and Lan Use Alliance, por exemplo, o NetLab afirma que, de 2019 a 2022, o Brasil teve “um governo que impôs uma ameaça ambiental sem precedentes ao destruir políticas públicas de proteção”. E que a derrota apertada para Lula em 2022 “indica que ainda existem muitos eleitores e políticos que concordam com os valores” de Jair Bolsonaro.

Entretanto, uma parte da queixa dos integrantes se explica pelo fato de o NetLab apontá-los como criadores de informações falsas. A bancada diz que apenas está cumprindo o seu papel de escrutinar as instituições públicas.

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Para que serviram os estudos contratados pelo governo?

Um levantamento do NetLab levou à Senacon, em novembro, a aplicar uma multa diária de R$ 150 mil à Meta, controladora do Facebook. Foram encontrados “serviços ilegítimos” relacionados ao Programa Desenrola Brasil, programa de renegociação de créditos lançado pelo governo. A empresa foi notificada, mas manteve os conteúdos irregulares no ar e por isso o governo aplicou a multa.

Na época, o secretário Wadih Damous considerou ser “inaceitável que os programas de governo continuem sendo desvirtuados em função da disseminação de notícias falsas”.

Entre 26 de julho e 26 de setembro do ano passado, foram identificados “mais de 2 mil anúncios fraudulentos ativos, com conteúdos ilícitos” relacionados ao Desenrola Brasil.

O monitoramento do laboratório também detectou que imagens de políticos governistas e de oposição estavam sendo usadas para golpe envolvendo uma suposta indenização a ser paga pela Serasa. Os golpistas usavam Inteligência Artificial (IA) para as fraudes.

Já no âmbito da parceria com o Ministério das Mulheres, o NetLab fez um levantamento que “identificou e classificou 1.565 anúncios publicitários dirigidos às mulheres como sendo problemáticos, irregulares ou ilegais/fraudulentos”.

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Foram apontadas 550 páginas e perfis responsáveis por publicar anúncios categorizados como “tóxicos” pelo NetLab, pelo tipo de ameaça que representam às mulheres.

O caso Moraes x Musk

Em 24 de abril deste ano, o NetLab publicou um “estudo de caso” sobre a atuação de perfis com indícios de serem fakes na disputa entre Alexandre de Moraes e o bilionário americano Elon Musk, dono do X, no episódio que ficou conhecido como “Twitter Files”. Segundo o estudo, entre os defensores de Musk, 52% dos compartilhamentos foram feitos por perfis com “atividade inautêntica”, como robôs. Já na turma pró-Alexandre, 44% dos compartilhamentos foram assim. A avaliação foi feita usando um software chamado Gotcha, criado por Santini e outros pesquisadores a partir de outra ferramenta chamada “Botometer”.

Segundo o relatório do Netlab, a defesa de Musk era integrada por “figuras públicas estadunidenses alinhadas à pauta da ‘liberdade de expressão’ absoluta”, como o jornalista Glenn Greenwald, e os deputados federais Nikolas Ferreira (PL-MG) e Marcel Van Hattem (Novo-RS). Já os “perfis críticos a Musk” estariam apontando “as inconsistências e distorções reveladas na cobertura do ‘Twitter Files’”. No dia anterior, o laboratório havia publicado uma nota técnica sobre “a assimetria e a precariedade das condições oferecidas em plataformas como o X/Twitter para o acesso a dados essenciais para investigações científicas e jurídicas”.

Após o início do convênio com o Ministério da Justiça, o Netlab também fez defesa do PL 2630, que propõe a regulamentação das redes sociais e tem apoio do Palácio do Planalto.

Um relatório batizado de “A guerra das plataformas contra o PL 2630″, formulado pelos pesquisadores do grupo em abril, aponta que o Google e a Meta, dona do Instagram e do Facebook, teriam agido para impedir a aprovação do projeto no Congresso.

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O estudo acusa as empresas de abuso de poder econômico e de burlar seus próprios termos de uso para promover conteúdos contrários à proposta em detrimento daqueles favoráveis. Diz ainda que as redes sociais manipulam o debate por medo de perder cifras bilionárias de publicidade digital.

O Ministério Público Federal chegou a cobrar explicações das redes sociais com base no levantamento do Netlab. As denúncias corroboram o discurso de Lula. Em julho, quando apresentou o 1º Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, o petista afirmou que as big techs atuam no Brasil “sem pedir licença e pagar imposto” e enriquecem ao “divulgar coisas que não deveriam ser divulgadas”.

O que diz o NetLab sobre as atividades dos bolsistas

Em resposta enviada à reportagem, o NetLab afirmou que está equivocada a interpretação de que as atividades dos bolsistas não têm relação com os projetos para os quais foram contratados.

Isso porque, diz o laboratório acadêmico, só acessa a dados sobre anúncios em plataformas digitais para os anúncios considerados políticos.

“Portanto, todas as atividades dos bolsistas consistem em analisar anúncios políticos, principalmente de forma retroativa, cujo volume aumenta consideravelmente em períodos eleitorais”, disse, em nota.

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O que diz o Ministério da Justiça

Em nota, o Ministério da Justiça informou que o convênio com o NetLab contempla, sim, pesquisas sobre “anúncios políticos”, estratégias de campanhas eleitorais” e “ferramentas usadas para atacar parlamentares negras”.

Assim como argumentou o laboratório da UFRJ, a pasta pontuou que os anúncios de interesse dos estudos são rotulados, pelas plataformas, como “políticos”. Por isso, inevitavelmente, são objeto das pesquisas delimitadas no convênio.

Com relação ao escopo das “estratégias eleitorais”, o ministério respondeu desta forma: “Neste sentido, o repasse do FDD ao NetLab UFRJ contempla também pesquisas sobre anúncios eleitorais, uma vez que são, em geral, rotulados como políticos. Isso significa que os dados sobre estes anúncios estão disponíveis para análise e pesquisa”.

O ministério destacou, ainda, que as pesquisas sobre ataques a parlamentares negras também estavam dentro do escopo do convênio porque “as mulheres são as principais vítimas de campanhas geradas por IA e ferramentas de modelos generativos”.

O que diz o Ministério da Mulher

O Ministério das Mulheres informou que “a pesquisa está sendo conduzida dentro dos objetivos do projeto” e que as “entregas estão acontecendo dentro dos prazos e metas estabelecidos”.

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“O NetLab/UFRJ é um laboratório de pesquisa respeitado nacional e internacionalmente, com publicações científicas em periódicos acadêmicos prestigiados cujos resultados e métodos são referendados pela comunidade acadêmica nacional e internacional. Esse fato justifica o uso das suas pesquisas como referência para o avanço do debate sobre regulação das plataformas digitais e combate à desinformação no Brasil”, frisou.