BRASÍLIA - Cerca de 154 milhões de usuários no Brasil. Receitas anuais bilionárias. Manipulação do discurso público. O debate sobre o projeto de lei 2630, conhecido como PL das Fake News, propõe a regulação de um setor que coloca em jogo interesses múltiplos. O texto foi originalmente criado para combater a disseminação de notícias falsas, mas a versão que tramita agora na Câmara dos Deputados pode afetar o debate político, a remuneração de pessoas que vivem da internet, como os influenciadores digitais, e, sobretudo, o faturamento das big techs.
Um dos pontos mais polêmicos do debate é se as redes sociais podem ser responsabilizadas, ou não, por crimes cometidos ou divulgados nas plataformas. Hoje, o Marco Civil da Internet não permite que as big techs respondam por esses conteúdos criados por terceiros. O texto do relator Orlando Silva (PC do B-SP) estabelece que as redes sociais terão responsabilidade junto aos usuários que pagarem para anunciar conteúdos causadores de danos.
As redes também podem ser responsabilizadas se não cumprirem o “dever de cuidado”, um conceito que as obriga a atuar de forma “diligente” para evitar que sejam disseminados crimes listados na lei. São eles: violação do estado democrático de direito, terrorismo, instigação a suicídio ou a automutilação, contra crianças e adolescentes, de violência contra a mulher e de infração sanitária.
O PL 2630 seria votado no início deste mês na Câmara, após ter sido aprovado regime de urgência. No entanto, diante de um placar apertado, o governo atuou para adiar a votação e tentar buscar maioria. As resistências são tantas que ainda não há nova data de votação prevista.
A seguir, confira o que está em jogo:
Big techs
Para Google, Facebook, Instagram, Telegram, WhatsApp, YouTube e TikTok , o PL das Fake News impõe regras para a publicação de conteúdos que podem impactar o faturamento publicitário. As big techs e a oposição alegam haver uma “responsabilização abusiva” no atual texto. Sustentam que, se aprovado, o PL das Fake News resultará em um cerceamento da liberdade de expressão.
Para o professor Emmanuel Publio Dias, especialista de marketing político da ESPM, entretanto, é preciso mudar a lei para que haja a responsabilização das empresas. “Hoje as redes sociais não são responsáveis nem civil nem criminalmente pelo que elas veiculam, o que está errado. Se uma pessoa entrar num bar, por exemplo, e anunciar que irá invadir uma escola, ela está cometendo um crime, e se o dono do bar deixar de tomar uma atitude, está compactuando com o criminoso. Agora, se a pessoa fizer isso dentro das plataformas digitais, ela está cometendo o crime da mesma forma, mas hoje as redes sociais não respondem por isso”, exemplifica Dias, um dos especialistas ouvidos pelos deputados na elaboração do projeto.
Segundo dados da Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC, na sigla em inglês), a Alphabet, controladora do Google, registrou uma receita de US$ 282,8 bilhões (o equivalente a R$ 1,4 trilhão, considerando a cotação atual) no ano passado. Houve um crescimento aproximado de 10% em relação a 2021. A receita da companhia, aliás, cresce ano a ano, e chegou a quadruplicar nos últimos oito anos. Em 2015, a Alphabet ganhou US$ 74 bilhões.
Já a Meta, dona do Facebook e do Instagram, registrou receita de US$ 116,6 bilhões (R$ 575 bilhões) em 2022, segundo relatório da própria empresa. A ByteDance, dona da TikTok, teve receita de US$ 80 bilhões (R$ 396 bilhões) no mesmo período. Houve um crescimento, contudo, de 30% em relação a 2021. Só no Brasil, a Meta registrou um total de 2,8 milhões de anúncios na plataforma desde agosto de 2020. Isso rendeu ao menos R$ 512 milhões para a empresa no período.
Alegando que o PL das Fake News pode afetar a livre circulação das informações, que seria a alma do seu negócio, as big techs têm usado sua estrutura para tentar barrar a votação do projeto das Fake News na Câmara. O Google chegou a incluir na sua página de busca um link dizendo que a proposta poderia “piorar” a internet. O Telegram disseminou mensagem alarmando seus usuários sobre uma suposta ameaça à democracia brasileira.
“O que interessa para as redes sociais? Basicamente vivem de tráfego, de captar e transmitir informações e fazer isso circular. Quanto mais informação circular, melhor. Por que? Porque os anunciantes vão atrás disso para colocar seus produtos, seus anúncios. Essa é fonte principal de receita. Aí começa a discussão ética. Em tese, pouca importa para as plataformas a origem da notícia e até mesmo a veracidade da notícia. Se eu escrevo que a terra é plana e isso circula, para elas está ótimo”, avalia o professor da ESPM.
De acordo com o Relatório de Visão Geral Global Digital 2023, publicado em fevereiro pela We Are Social, o Brasil tem 154 milhões de usuários de mídias sociais. Isso equivale a cerca de 70% da população brasileira. Além disso, algumas das principais redes sociais chegam a ter no Brasil 8% de usuários do mundo.
Setor de comunicação
Para o jornalismo, o projeto é relevante para garantir pagamento por conteúdo que costuma ser reproduzido gratuitamente pelas plataformas digitais. A receita advinda da remuneração prevista no PL das Fake News serviria para compensar essas empresas pelo custo que têm com a produção de notícias.
De acordo com dados do Similarweb, sites de notícias e mídia de comunicação no Brasil tiveram 129,56 milhões de usuários únicos por mês, em média, neste ano.
“A chamada mídia tradicional perdeu gigantescos volumes para as grandes redes e recuperar esse público é muito importante. Além disso, hoje a imprensa tem um campo de investigação da sua produção muito mais fácil de auferir do que as big techs”, explica Dias.
Políticos
Para deputados, senadores e chefes de Estado está em jogo a conquista do debate público. De um lado, o atual governo busca regras mais rígidas, o que pode virar terreno para perseguir opositores. Já a oposição, hoje liderada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, atua por menos regras, o que pode virar terreno para disseminação de notícias falsas, como vem ocorrendo nos últimos anos.
O deputado Mendonça Filho (União-PE) chegou a apresentar um projeto alternativo ao PL das Fake News. Ele faz parte do grupo de parlamentares de centro que defendem que haja alguma regulamentação, mas não querem que as regras interfiram na liberdade de expressão nem imponham controle do governo às big techs. No projeto de Mendonça, as plataformas fariam a autorregulamentação do setor. Ou seja, como já ocorre no setor de publicidade, o próprio setor cuidaria de coibir abusos sem interferência de uma agência externa ou governamental.
Inicialmente, estava previsto no PL das Fake News a criação de um órgão governamental para atuar como fiscal das plataformas. Batizada de “Ministério da Verdade”, a proposta perdeu força uma vez que daria ao governo o poder de definir o que é o que não é fake news, politizando a discussão. O relator Orlando Silva tirou esse trecho do texto e, agora, estuda deixar a função para a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). O órgão regulador teria mais independência. Os diretores têm mandatos e não podem ser demitidos pelo presidente.
Influenciadores
Para produtores de conteúdo, o PL das Fake News é um divisor de águas. Se por um lado os influenciadores estão interessados na remuneração e na ampliação da “vitrine virtual”, por outro as plataformas alegam que o pagamento pode inviabilizar o negócio.
De acordo com dados da Nielsen, líder em medição de audiência e de resultados, o Brasil conta com mais de 500 mil criadores de conteúdo com mais de 10 mil seguidores nas plataformas.
“Falando apenas das pessoas honestas, que não distribuem fake news nem conteúdos criminosos, quanto mais likes têm, mais ganham. A curtida, então, é uma moeda. Para os desonestos, para os que vivem de notícias falsas, eles serão punidos fortemente com o novo texto”, diz Emmanuel Publio Dias.
O texto da Câmara não inibe o uso das redes por qualquer pessoa, mas impõe regras para quem usá-las para estimular e cometer crimes.
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