PL do Marco Temporal permite estrada em terra indígena e reedita contato com isolados da ditadura

Texto em discussão na Câmara cria dispositivo que permite contato com indígenas isolados em caso de “utilidade públicas”; mudança remete a política de contato que vigorou na ditadura militar.

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Foto do author Vinícius Valfré

BRASÍLIA - O projeto de lei que torna necessária a ocupação de uma terra indígena até 5 de outubro de 1988 para que ela possa ser demarcada tem outros pontos polêmicos no texto que dividem o Congresso. Embora a chamada tese do “marco temporal” seja o principal item do PL 490/2007, o PL do Marco Temporal altera políticas indigenistas adotadas há décadas no País. Uma delas reacende a possibilidade de contato com povos que vivem em isolamento voluntário, prática que marcou a relação da ditadura militar com indígenas.

O texto pode ser votado na Câmara nesta terça-feira, 30. Se aprovado, vai ao Senado. Os deputados aprovaram a tramitação em urgência do projeto na última quarta-feira, 24, por 324 votos a a 131. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) liberou a base na votação da semana passada, sem pedir voto favorável nem contrário ao requerimento.

Manifestação no Rio de Janeiro, em 2013, reuniu estudantes em indígenas contra crimes praticados na ditadura militar  Foto: Marcos de Paula/AE

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Além do marco temporal, a proposta implementa também a possibilidade de contato com indígenas que vivem em isolamento voluntário para ações de “utilidade pública”, inclusive por meio de “entidades particulares, nacionais ou internacionais”, contratadas pelo Estado.

O texto não especifica quais seriam as atividades de utilidade pública admitidas. Por se tratar de expressão genérica, parlamentares e movimentos contrários ao projeto temem que o dispositivo permita o contato forçado sob a justificativa de realização de obras e até de missões religiosas em localidades habitadas por povos sem contato com a chamada sociedade envolvente.

A política de não contato com povos isolados predomina no Brasil desde o fim dos anos 1980. Com condições biológicas específicas, grupamentos indígenas podem ser exterminados por doenças como a gripe e o sarampo. A Constituição de 1988 reconhece “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” dos indígenas, e o Brasil é signatário de normativas internacionais que reconhecem a chamada autodeterminação dos povos indígenas.

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Na ditadura militar, indígenas morreram aos milhares como consequência da estratégia de atração e contato adotada para viabilizar estradas e hidrelétricas. Entre os casos mais simbólicos, o contato com os panará para a construção da rodovia Cuiabá-Santarém, em meados dos anos 1970, e com os waimiri atroari, na obra da rodovia Manaus-Boa Vista. Estima-se que morreram mais de dois terços desses grupos. A mortalidade também marcou a história dos grupos awá, no Maranhão, durante a construção da ferrovia Carajás, nas décadas de 1970 e 1980.

Criador do departamento de índios isolados da Funai em 1987, o indigenista Sydney Possuelo formatou a política do não contato e é reconhecido internacionalmente como a maior referência no tema dos isolados. Primeiro, ele liderou missões de contato para o regime militar. Mais tarde, entendeu que a estratégia era equivocada.

“Quando se fazia contato, morriam muitos índios. Mas havia o dilema: se não fizer o contato, a comunidade indígena também morre com a abertura de estradas e fazendas. Então, trabalhamos com vários presidentes para definir uma política específica para esses povos isolados, sem contato com a sociedade nacional”, disse, em uma entrevista ao Estadão.

No Brasil, há pelo menos 114 povos indígenas isolados. Deles, pouco se sabe sobre organização, população e costumes. A maior concentração de povos isolados está na Terra Indígena Vale do Javari, no extremo oeste do estado do Amazonas.

A região, do tamanho de Portugal, é alvo da cobiça de pescadores ilegais e garimpeiros. Também é rota do tráfico de drogas e de armas. Segundo entidades indigenistas, a exploração de bens naturais por invasores ameaça a existência dos nativos porque há mudanças na oferta de alimentos e demais itens necessários à subsistência.

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Estradas

Para além do marco temporal e da possibilidade de contato com isolados em casos de “utilidade pública”, o projeto de lei permite a instalação de empreendimentos dentro de terras indígenas.

O texto cita instalação de “equipamentos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos”. Entidades e deputados contrários à proposta classificam o trecho como problemático.

“Não se olvida da necessidade de estruturas físicas para a prestação de serviços de saúde e educação nas terras indígenas. Todavia, o artigo é genérico e permite a implantação de estradas e outras estruturas impactantes para qualquer finalidade”, destaca relatório técnico do Instituto Socioambiental (ISA).

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