O silêncio de Jair e Michelle Bolsonaro (PL) no depoimento da Polícia Federal (PF) para o qual foram convocados nesta quinta-feira, 31, é uma forma de exercício do direito fundamental de não incriminar a si mesmo, previsto no artigo 5º da Constituição. Apesar de o depoimento em fase de inquérito não ter a força de uma prova, pode se tornar uma “bola dividida” quando não é a estratégia de todos os suspeitos.
“Existem duas situações no processo criminal: ou você é ouvido como investigado, ou como testemunha. O investigado tem direito ao silêncio. A testemunha tem o dever de falar a verdade. Existe essa diferença importante”, explicou Raquel Scalcon, professora de Direito da FGV-SP.
Bolsonaro e Michelle são investigados pela participação em um esquema internacional de venda de joias recebidas como presentes em agendas oficiais. “Assim como eles têm a possibilidade de contar a sua versão dos fatos e ficar em silêncio, se quiserem podem até mentir”, disse a professora, que é doutora em Direito Penal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O silêncio em depoimentos prestados na fase de inquérito é um gesto bastante comum, sobretudo quando o investigado ainda não tem acesso a tudo o que foi produzido dentro daquela investigação. “É uma forma de se resguardar, esperar uma eventual denúncia, e falar só quando estiver diante de um juiz”, afirmou Scalcon.
O argumento do casal Bolsonaro para se manter em silêncio é que o Supremo Tribunal Federal (STF), que acompanha as investigações da PF e autoriza operações, quebras de sigilo e buscas, não seria competente para o caso. A defesa justifica que a Procuradoria-Geral da República (PGR) se manifestou pelo “declínio da competência” sobre o caso, remetendo os autos para a 6ª Vara Federal de Guarulhos.
Os advogados defendem, na mesma esteira do que o procurador-geral da República Augusto Aras disse nesta quarta, 30, que o caso deveria estar na primeira instância, por causa do término do mandato presidencial e, consequentemente, da perda do foro privilegiado.
A Vara Federal local, porém, enviou para o STF, no último dia 15, o inquérito sobre as joias sauditas recebidas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e retidas no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, por ter conexão com a investigação mais ampla conduzida pela PF em Brasília.
“A finalidade do inquérito é subsidiar a acusação do Ministério Público. Ele não é feito com contraditório, igual o processo criminal. O processo tem outra finalidade: produzir, avaliar e valorar as provas”, disse Thiago Bottino, coordenador do curso de Direito da FGV-Rio.
O professor, que é doutor em Direito pela PUC-Rio, também afirma que, se a investigação ainda não acabou, “faz sentido, do ponto de vista da defesa, se manifestar só depois, quando se terá noção de tudo o que precisa ser respondido. Às vezes, também como estratégia, o suspeito nem se manifesta no inquérito, porque, se isso virar processo, ainda vai ter toda uma fase de produção de provas”.
Faca de dois gumes
Nesta quinta, além de Michelle e Bolsonaro, a Polícia Federal intimou para depor mais seis suspeitos do caso das joias: o advogado Frederick Wassef, Mauro Cesar Barbosa Cid, Mauro Cesar Lourenna Cid, Osmar Crivelatti, Fábio Wajngarten e Marcelo Câmara. Os dois últimos também não prestaram depoimento, também sob alegação de falta de competência do STF. O processo e os depoimentos são sigilosos, mas, até o momento, sabe-se que Mauro Cid e Wassef optaram por falar.
“Depoimentos de inquérito não têm valor como prova, mas o problema para os dois (Michelle e Bolsonaro) é o que os demais falarem. Fica o silêncio deles contra uma narrativa, que pode ou não ser incriminatória”, afirmou Mauricio Dieter, advogado e professor de Criminologia e Direito Penal da USP.
Como o depoimento em fase de inquérito é uma oportunidade para o suspeito dar a sua versão, o silêncio pode ser uma faca de dois gumes. ”Quando a pessoa fica em silêncio, ao invés de dar uma versão alternativa compatível com a evidência, ela permite que a autoridade policial construa a sua própria narrativa, permite que a polícia faça suas próprias ilações”, disse o professor.
Depoimento não é prova
Mesmo que Michelle e Bolsonaro tivessem falado sobre os crimes dos quais são suspeitos, o depoimento deles não pode ser considerado uma prova – apesar de acontecer na fase de inquérito. “Como o investigado não tem obrigação de falar a verdade, não se pode dizer que aquilo é uma prova. O depoimento é um espaço para ele dar a sua versão”, afirmou Bottino.
A intimação do casal para prestar depoimento foi no dia 22 de agosto, 11 dias depois de a Operação Lucas 12:2 – que vasculhou endereços ligados a Frederick Wassef e Mauro Cesar Lourena Cid – ser deflagrada.
Apesar de ser comum que, em casos de grande repercussão, o suspeito seja chamado a depor assim que o episódio vem à tona, o depoimento dele não pode ser ponto de partida da apuração. “Quem acha que a investigação tem que partir do depoimento do suspeito ou do acusado do processo, está errado. A pessoa não vai dizer algo que a incrimine”, explicou Thiago Bottino.
Estratégia ou exercício de direito?
Mauricio Dieter, que é advogado criminalista e professor universitário, chama a atenção para o fato de que, por mais que o silêncio em depoimentos possa ser uma orientação dos defensores, ele não pode ser reduzido a uma mera estratégia processual.
“O direito de ficar em silêncio está vinculado à ampla defesa. Todo cidadão pode fazer isso e não pode ser censurado. É um direito fundamental do acusado, consequência lógica do direito à ‘não-autoincriminação’.” Raquel Scalcon complementa: “O fato de ficar em silêncio não pode ser usado contra ninguém. Não se pode declarar ninguém culpado por casa disso”.
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