Presidencialismo de coalizão resiste, mas falta de agenda de Lula é desafio, avalia Fernando Limongi

Autor de Democracia Negociada, professor avalia que o presidencialismo de coalizão resiste e continua eficiente, mas enfrenta desafios como a falta de agenda de Lula e o fortalecimento do Congresso. Leonardo Weller, coautor da obra, aponta a negação da crise fiscal como um entrave à recuperação econômica

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Foto do author Hugo Henud
Foto: FELIPE RAU
Entrevista comFernando Limongi e Leonardo WellerCientista política e Economista, respectivamente

Embora frequentemente apontado como um sistema em crise, o presidencialismo de coalizão – modelo político que permite ao Executivo formar alianças com o Legislativo para garantir governabilidade – ainda demonstra eficiência, mesmo diante de novos desafios, como o fortalecimento do Congresso, a ausência de uma agenda consistente no governo Lula, e o impacto de lideranças antissistêmicas, a exemplo de Jair Bolsonaro. A avaliação é do cientista político Fernando Limongi, autor de Democracia Negociada – obra que destaca a negociação política como mecanismo essencial para construir consensos em momentos cruciais das crises vividas no País, como a superação da ditadura militar e a elaboração da Constituinte.

“Quando o governo precisa fazer uma coalizão, ele vai fazer. Vai conseguir fazer? Sim, sempre vai conseguir. [...]. Mas e aí tem outro problema que é que o governo não sabe muito bem qual é sua agenda. Lula frequentemente fala do passado: ‘De 2002 a 2010 era lindo, era maravilhoso, vamos voltar para lá’. Mas como voltar, se as condições são diferentes? Que política o governo quer fazer? Não há o Bolsa Família ou o Minha Casa Minha Vida como novidade”, diz em entrevista ao Estadão.

Professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), Limongi também projeta o cenário político para as eleições presidenciais de 2026, destacando a tendência histórica de bipartidarismo nas disputas pelo Planalto. Para o cientista político, é provável que o pleito seja polarizado entre Lula – ou um nome indicado por ele – e um candidato de centro-direita forte, cujo perfil dependerá, em grande parte, dos desdobramentos do inquérito relacionado ao golpe de Estado e do espaço político ocupado por figuras ligadas a Bolsonaro, como Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo.

O cientista político Fernando Limongi fala do presidencialismo de coalizão e as dificuldades que o governo Lula enfrenta. Foto: FELIPE RAU /ESTADÃO Foto: FELIPE RAU

Já o professor de economia da FGV, Leonardo Weller, coautor do livro, argumenta que a negação do governo da gravidade da crise fiscal – caracterizada pelo desequilíbrio entre receitas e despesas públicas –, somada à forte alta do dólar, representa um dos maiores obstáculos à recuperação econômica e à estabilidade política. “O PT se protege muito mal, dizendo que a crise não existe, que é inventada pela Faria Lima, uma coordenação maligna que faz o dólar chegar a R$ 6. Enquanto continuarem batendo nessa tecla, ficarão completamente perdidos”.

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Confira a seguir a íntegra da entrevista de Limongi e Weller concedida ao Estadão:

No livro são mencionadas mudanças constitucionais que fortaleceram o Legislativo, como o trâmite das Medidas Provisórias. Além disso, outras questões, como os vetos e alterações nas leis orçamentárias, tangenciaram instrumentos de negociação utilizados pelo presidente. Apesar dessas transformações, a taxa de sucesso do Executivo no Congresso permanece elevada. Na visão de vocês, estaríamos diante um amadurecimento do presidencialismo de coalizão, agora negociado em novas bases? Quais seriam as principais características dessa mudança em contraste com a ideia de crise amplamente debatida?

Fernando Limongi: O presidente precisa formar uma coalizão. O que se tem em mente quando se fala em presidencialismo de coalizão? Quando o governo precisa fazer uma coalizão, ele vai fazer. Vai conseguir fazer? Sim, sempre vai conseguir, porque sempre há pessoas dispostas a cooperar com o governo e que preferem participar do governo a ficar na oposição. Por outro lado, sempre há quem prefira permanecer na oposição, esperando pela próxima eleição para chegar ao poder. Esse é o caso do grupo da direita bolsonarista. O resultado de 2022 trouxe uma vitória expressiva para essa direita no Congresso, mas eles perderam a presidência. Assim, ficaram numa espécie de limbo: não sabiam se aderiam ao governo ou se esperavam, apostando no Bolsonaro. Esse cenário deixou muitos sem interesse em participar do governo, pois sua identidade política está atrelada ao bolsonarismo e, mais do que isso, não depende de políticas públicas, mas sim de uma atuação baseada em redes sociais e lacração. Por exemplo, se fossem convidados a assumir o Ministério dos Transportes ou o Ministério da Saúde — como ocorria anteriormente, quando cargos ministeriais serviam como moeda de troca eficiente —, eles recusariam. Eles não fazem política mais dessa forma. Isso complicou a formação da coalizão, mas o poder dado a Arthur Lira pelo próprio Bolsonaro também teve impacto. Na versão de Bolsonaro do presidencialismo de coalizão, ele cedeu completamente o controle do Congresso e deixou que ‘eles fizessem a política’, permitindo que brincassem com o dinheiro disponível. Então, realmente dificultou um pouco mais com a mudança do tramite da medida provisória, veto foi um pouco mais efetivo, mas não tirou a força do presidente como força aglutinadora. Mas e aí tem outro problema que é que o governo não sabe muito bem qual é sua agenda. Lula frequentemente fala do passado. Mas como voltar, se as condições são diferentes? Que política o governo quer fazer? Não há o Bolsa Família ou o Minha Casa Minha Vida como novidade. Não há um “novo Globo”. Agora, contratar um marqueteiro para isso não resolve [em alusão à troca na Secretaria de Comunicação Social]. Já não deu certo com Dilma. Tudo isso pode complicar ainda mais a governabilidade.

Seus estudos com a também cientista política Argelina Figueiredo indicam que as coalizões tendem a se expandir ao longo do mandato presidencial. Como o senhor avalia a base governista nesta segunda metade do governo Lula ?

Fernando Limongi: Essencial será a troca de Lira por Hugo Motta na presidência da Câmara. Lira tinha consolidado um grande poder, seja pelo controle da agenda, que ele recebeu de mão beijada por causa da pandemia, quando o Congresso transitou para o modelo virtual. Com isso, ele fazia absolutamente tudo e desfiava muito facilmente. Ele também recebeu de mão beijada uma parcela significativa do orçamento. Então, ele estava controlando uma boa base de parlamentares. E ele é um cara da escola de Eduardo Cunha, era da tropa de choque de Cunha. Não é um cara qualquer: bom de jogo, perigoso, ativo e capaz. Vamos ver como será com o novo presidente e o tipo de relação que ele vai ter com Lula. Lira é muito conflitivo, estica a corda até o último momento. Não acredito que o novo presidente da Câmara tenha a mesma envergadura que Lira, o mesmo traço psicológico, bom de negociação e de gerar conflito, e de segurar a onda. E já estão todos de olho em 2026.

Como a percepção do eleitorado em relação à economia, especialmente no que diz respeito à desvalorização cambial e à inflação, pode influenciar o desempenho de Lula em 2026?

Leonardo Weller: O PT se protege muito mal, dizendo que a crise não existe, que é inventada pela Faria Lima, uma coordenação maligna que faz o dólar chegar a R$6. Enquanto continuarem batendo nessa tecla, ficarão completamente perdidos. Acho que falta, no Brasil como um todo, mas especificamente ao PT, um entendimento da gravidade da crise econômica de 2015-2016, que inaugurou o período de baixo crescimento e deterioração fiscal que vivemos atualmente. A narrativa do PT sobre a crise do governo Dilma é essa: ‘não houve crise, foi a elite que quis derrubar a Dilma’. Enquanto continuarem com essa postura, não haverá solução. A deterioração fiscal coloca em xeque o futuro da sustentabilidade fiscal da dívida pública. Isso resulta em uma saída de recursos do Brasil, aumentando a probabilidade de uma crise mais grave no futuro. Infelizmente, não há mais o espaço fiscal que existia há 20 ou 30 anos para o lançamento de políticas públicas de grande envergadura. Além disso, o Congresso e os políticos querem vencer as eleições. Hoje enfrentamos um problema fiscal gravíssimo que, aparentemente, não tem solução. Se a situação estourar, afetará todos; se for resolvida, os frutos beneficiarão todos. Caso surja um Executivo capaz de colocar pessoas competentes para gerir o governo e apresentar soluções críveis, a classe política pode ir a reboque e acompanhar essa liderança. O problema é que o governo está negando a existência desse problema fiscal. Enquanto continuar negando, esqueça: não haverá solução.

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Projetando para as próximas eleições presidenciais como avaliam a correlação de forças partidárias?

Fernando Limongi: A eleição será bipartidária. Dificilmente não será. Para isso, teria que haver um erro de coordenação muito grande. E, ao contrário do que muitos esperavam, o fato de ser em dois turnos força ainda mais a coordenação, porque é necessário calcular quem tem chance de passar ao segundo turno e quais serão as consequências disso. Dividir o centro ou a direita é muito perigoso, pois pode resultar em dois candidatos de esquerda no segundo turno. Além disso, como a eleição para governador ocorre ao mesmo tempo, lideranças com capital político médio preferem concorrer a governador do que arriscar uma candidatura à presidência. Assim, o calendário eleitoral está diretamente conectado entre presidente e governador. Muito provavelmente, teremos Lula ou um candidato apoiado por ele enfrentando um candidato de centro-direita forte. Até lá, dependendo dos desdobramentos do inquérito relacionado ao golpe, esse candidato pode ser alguém ligado a Bolsonaro ou um nome novo, como Tarcísio (de Freitas, governador de São Paulo). Isso será determinante para a estruturação do sistema.

O livro apresenta a democracia negociada como mecanismo fundamental para a transição democrática e para a construção de consensos diante de crises política vividas no País. De 2013 em diante, incluindo o mandato de Bolsonaro, o senhor identifica eventos ou processos que dificultaram a manutenção dessa lógica de relação negociada na política partidária brasileira?

Fernando Limongi: Acho que tem vários fatores que indicam essa quebra. De 1994 a 2014, tivemos um monopólio PSDB-PT, que controlava a política e organizava todo o sistema político. O embate que surge após a reeleição da Dilma tira isso de equilíbrio. Essa alternância, essa competição mais centrista, acaba. Mas, se voltarmos no tempo, há várias tentativas e momentos de tensão entre esses dois grupos, com tentativas de um prevalecer sobre o outro. Temos as Diretas Já – uma tentativa de ir mais à esquerda, romper com o autoritarismo e buscar uma solução menos continuísta, mais de ruptura – e a Constituinte, com um confronto forte entre progressistas e conservadores. Então, essa tensão sempre esteve presente com um lado tentando prevalecer sobre o outro, o que nunca rolou. Sempre você vai tendo certos acordos ali, porque o que dá é para fazer pelo centro, fazer com negociação. Pensando nos governos do PT, o partido vence quatro eleições presidenciais consecutivas, o que é significativo, provocando um esgarçamento desse centro e pressionando o PSDB. Em resposta, o PSDB reage, abrindo o flanco mais à direita e radicalizando seu posicionamento. Portanto, não se trata de algo estático ou isento de tensões.

Leonardo Weller: Concordo, tínhamos um monopólio PT-PSDB, e o PSDB ruiu. Ele já não desempenha a função que tinha, que era atrair o voto da direita, do centro, o voto antipartidário e até mesmo o voto antidemocrático. Esse papel foi perdido. Seria impensável, décadas atrás, que alguém como Bolsonaro fosse eleito. É, sem dúvida, uma ruptura, estamos vivendo algo novo. No entanto, o que foi construído nesses 30 a 32 anos após a democratização tem se mostrado bastante resiliente, mesmo diante da tentativa de golpe de Bolsonaro. Isso evidencia uma resiliência notável. Com certeza o jogo mudou, mas o que foi edificado na democracia desde a década de 80 demonstra uma força considerável.

Que condições seriam necessárias para reverter o clima polarizado e retomar uma lógica de mais cooperação e de consenso na política?

Fernando Limongi: O que estamos assistindo é uma grande troca geracional e de referência política. Até recentemente, toda a referência política girava em torno de superar o autoritarismo da ditadura. Toda a geração que estava no controle, de alguma forma, havia participado da transição. Os líderes partidários que estão agora no comando não viveram a transição. O Lula é o último dessa geração. Agora, vamos viver a democracia como ela é, sem essa referência ao passado, sem a preocupação constante de construir e evitar o retorno à ditadura. Nesse ponto de vista, o Bolsonaro é extremo. Todas essas questões trazem complexidade para criação de acordos entre os partidos.

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