Após pressão do agronegócio, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), recuou e suspendeu na noite desta quarta-feira, 6, o corte de benefícios fiscais do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para alimentos e medicamentos genéricos. A medida é uma demanda de produtores rurais, que tinham marcado protestos em 200 cidades contra o aumento da cobrança.
Em nota, o governo de São Paulo justificou o recuo afirmando que a mudança nas alíquotas do imposto em 2021 e 2022 foi proposta em agosto do ano passado, quando as internações e mortes por causa da covid-19 estavam em queda, em comparação ao período de pico. “Contudo, atualmente os indicadores apontam para novo aumento e uma segunda onda da doença”, diz o texto. “A redução de benefícios do ICMS poderia causar aumento no preço de diversos alimentos e medicamentos genéricos, principalmente para a população de baixa renda”, afirmou Doria.
Os produtores pressionaram o governo pela isenção na cobrança do imposto sobre combustíveis e insumos, como adubo e sementes. Eles dizem que o aumento do ICMS sobre esses produtos deve causar alta no preço dos alimentos, mesmo após a promessa de barrar a cobrança nas cestas básicas de alimentos e de remédios.
A intenção dos protestos marcados para quinta-feira, 7 , segundo organizadores, era tentar convencer o governador a reverter parte das cobranças. Além disso, os organizadores querem sensibilizar a população sobre o motivo de um eventual aumento de preços.
Representantes do setor dizem que os produtores “sentem-se traídos” pelo governo e por deputados estaduais alinhados ao agronegócio que autorizaram o ajuste no imposto. A permissão para o corte de benefícios ocorreu com a aprovação do pacote de ajuste fiscal na Assembleia Legislativa, em outubro. Para ter efeito, no entanto, o governador deve editar decretos que cortam os benefícios fiscais para cada setor.
“É catastrófico que o governador tenha, exatamente nesse momento de dificuldade que o setor agropecuário passa, permitido essa alteração no ICMS”, disse o conselheiro da Sociedade Rural Brasileira (SRB) Francisco Godoy, antes do anúncio do recuo de Doria. “Os deputados alinhados com o governo federal acabam se apropriando um pouco disso, dessa oposição entre o governo estadual e federal.”
A Federação da Agricultura e Pecuária do Estado (Faesp) afirmou que realizou terça-feira, 5, as últimas tratativas com o governo do Estado para reverter o fim do benefício fiscal de insumos e produtos agrícolas, mas não tinha obtido sucesso. “Apesar das inúmeras tentativas de reverter o ajuste fiscal, o governo não se sensibilizou e manteve o aumento do ICMS”, disse a Faesp, em nota, antes da suspensão da medida. A entidade então declarou apoio às carreatas e desfiles de tratores que estão marcadas para quinta, apesar do recuo de Doria. “O Governo do Estado atendeu parte das propostas do agronegócio, mas outros pleitos importantes ficaram de fora”, afirmou a entidade na noite desta quarta, 6.
“Esperamos que o governador tenha a sensibilidade que a equipe econômica não tem”, disse Edivaldo Del Grande, coordenador do Fórum Paulista do Agronegócio, que reúne 45 entidades. “Estamos fazendo todo esse movimento para alertar o governo. Eu acho impossível que o governador Doria tenha feito esse pacote de maldades sabendo o impacto que isso ia ter em plena pandemia.”
Deputados da base governista têm intermediado conversas entre o governo e representantes de diferentes setores da economia nos últimos dias, mas sem conseguir emplacar novas isenções. “Está havendo um excesso de acirramento de ânimos”, opinou o deputado estadual Barros Munhoz (PSB), que tem dialogado com produtores rurais e com o governo. Munhoz defende a manutenção de alguns cortes de benefícios, mas tenta negociar um alívio na cobrança de insumos agrícolas e sobre a energia elétrica em áreas rurais que hoje têm isenção.
Para secretário, medida era ‘Robin Hood’
Horas antes de o governador Doria cancelar o corte em benefícios fiscais ao agronegócio, o secretário estadual de Projetos, Orçamento e Gestão, Mauro Ricardo, minimizou a impopularidade da medida e eventual prejuízo para a imagem do governo. “O ajuste fiscal sempre causa desgaste político”, disse Ricardo, em entrevista ao Estadão, durante a tarde. Para ele, a intenção era garantir o orçamento de áreas que prestam serviços à população pobre do Estado. “Estamos fazendo o ajuste fiscal pensando no futuro e não no presente.”
Segundo o secretário, o governo esperava arrecadar cerca de R$ 7 bilhões com o corte nas isenções de imposto. Desse total, ele disse que seriam repassados R$ 2 bilhões à pasta da Saúde, R$ 2 bilhões para a Educação, e que o restante deve ser repartido entre Assistência Social e Segurança Pública. “Aqui é um ‘Robbin Hood’, temos de tirar um pouco do setor que ganhou bastante para retornar à população mais carente”, disse.
Mauro Ricardo também defendeu que os produtores reduzam sua margem de lucro para absorver o valor do imposto que teriam que pagar. Ele citou os preços de alimentos que aumentaram acima da inflação. Os agricultores dizem que foram prejudicados pela alta do dólar na compra de insumos e equipamentos. “É um setor extremamente incentivado, com alta renúncia fiscal”.
Analistas sugerem reforma tributária
Mudanças na política de isenção fiscal podem até atingir o objetivo de aumentar a arrecadação de um Estado no curto prazo, mas também podem fazer preços subirem. Com o passar do tempo, a medida pode levar à queda nas vendas e, consequentemente, na arrecadação. Para analistas, a saída mais eficiente para o problema fiscal enfrentado por vários Estados é uma reforma que simplifique a arrecadação de tributos.
Na avaliação da pesquisadora da FGV Agro Talita Priscila Pinto, autora de estudo sobre a incidência do ICMS para a economia paulista, o efeito do fim da isenção do imposto para itens que são usados na cadeia do agronegócio não só será repassado ao consumidor como pode custar mais caro às pessoas do que vai arrecadar ao Estado.
“Para cada R$ 1 que o contribuinte pagar em imposto, ele vai ter que abrir mão de consumir R$ 2,75”, disse Talita ao Estadão antes do anúncio da suspensão em mudanças no ICMS. Segundo a pesquisadora, seu estudo projeta uma retração no PIB de São Paulo de até R$ 4 bilhões em 2021 e 2022. Para ela, famílias mais pobres podem sofrer com a eventual alta de preços nos produtos agropecuários, pois tendem a gastar uma parcela maior de seus rendimentos com alimentos.
Talita lembrou que uma saída mais sustentável a médio prazo seria a aprovação de uma reforma tributária. Por outro lado, segundo a pesquisadora, outros Estados e mesmo o governo federal já promoveram cortes em benefícios setoriais, como os adotados por São Paulo, para lidar com queda na arrecadação.
O economista Heron do Carmo, da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP), também acredita que a tendência é a de que os empresários do agronegócio repassem o custo ao consumidor final. Em entrevista pouco antes do recuo de Doria, o secretário estadual de Projetos, Orçamento e Gestão, Mauro Ricardo, defendeu que, em vez de repassar o custo ao consumidor, produtores rurais reduzam a margem de lucro para absorver o valor do imposto.
“Esse tipo de solução não é a ideal. Já vimos isso com a Cide (tributo da gasolina) do combustível e com a CPMF. A solução ideal é uma reforma tributária que repactue tudo isso e mantenha uma situação de equilíbrio (fiscal), já que há um problema de arrecadação do Estado. Mas é difícil”, disse o professor da FEA-USP.
A proposta, segundo o economista, deveria ser debatida levando em conta, inclusive, a desproporção dos impostos pagos por um trabalhador formal ou por um microempresário.
“Em momentos de crise, na história econômica do Brasil recente, esse processo de retirada de subsídios ou de criação de novos impostos e novas taxas, já vem acontecendo nesse quadro de restrição orçamentária”, disse Carmo. “Uma solução é tentar reduzir gasto – há muita dificuldade para isso – e o outro é aumentar tributo ou reduzir benefício tributário.”
Talita concordou com a necessidade de reforma: “Nosso sistema é extremamente complexo e reforma é necessária”. /COLABOROU PAULA REVERBEL
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