Um dos pioneiros da internet no Brasil, o engenheiro Demi Getschko sentiu-se aliviado quando viu ser transformada em projeto de lei a Medida Provisória (MP) que definia regras para a remoção de conteúdos em redes sociais. Ele vê falhas na proposta – especialmente a lista de situações em que haveria “justa causa” para a exclusão de mensagens – mas diz que, ao menos agora, o Congresso poderá debater com calma os problemas de deixar na mão de gigantes de tecnologia a decisão sobre o que pode ou não ser tolerado.
No Legislativo, o projeto foi alvo de críticas nesta semana. Já existe uma proposta sobre o mesmo assunto, aprovada pelo Senado e em análise na Câmara, o que gerou reclamações do relator da matéria, deputado Angelo Coronel (PSD-BA). Ele e outros congressistas defendem que o projeto do presidente Jair Bolsonaro seja anexado ao texto que já está em tramitação, batizado de PL das Fake News, com prioridade para o que já foi aprovado por senadores – ou seja, as propostas do presidente podem ficar em segundo plano.
Professor de ciências da computação na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e membro do Comitê Gestor da Internet, Getschko pediu moderação no debate sobre discurso de ódio e fake news na internet, com um alerta que o fez lembrar do filósofo Friedrich Nietzsche: “Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E, se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você.”
O projeto de lei que trata de remoção de conteúdo de plataformas, que vai na mesma direção de uma MP já recusada, traz alguma preocupação mais grave?
Ninguém é a favor de remoção aleatória de conteúdo. Tanto a legislação nos Estados Unidos, na Sessão 230 norte-americana, quanto o Marco Civil da Internet, em seu artigo 19, dizem que um intermediário na internet não é responsável pelo conteúdo que seus usuários colocam e, portanto, deve ser imune em relação a isso. Isso é completamente claro em outros casos clássicos: se você recebe uma carta ofensiva pelo correio, a culpa não é dos Correios, por exemplo. Outro caso é se o intermediário, ou o provedor (de um serviço na internet), é uma espécie de agregação de usuários com certo interesse, ele pode fazer respeitar suas regras de grupo – obviamente, desde que essas regras estejam abrigadas pela Constituição. O que quero dizer com tudo isso é que está na hora de ter uma longa discussão. E o principal problema da tal Medida Provisória é que o Marco Civil resultou de seis anos de discussão. Não pode mudar com uma decisão ‘top-down’, na qual alguém simplesmente chega e diz ‘isso é permitido e aquilo é proibido’. Deve ser algo originário de um consenso da comunidade. O segundo ponto é que, se quiser catalogar tudo aquilo que é permitido ou não, você vai errar em excesso ou falta. A tecnologia torna o que é novidade de hoje em coisas obsoletas amanhã. Um projeto de lei que fosse discutido longamente na Câmara, como já tem sido discutida no Congresso a responsabilização no provedor, é saudável. Pode sair algo de útil daí. Eu não jogaria fora ou condenaria automaticamente porque veio de A, B ou C. Eu gostaria de discutir o mérito.
O Marco Civil da Internet, na sua opinião, precisa de ajustes?
Sou totalmente a favor do Marco Civil desde o começo. O problema é definir o que é esse intermediário. Eu acho que ele deve ser isento de responsabilidade, desde que seja mesmo só um intermediário. Um jornal, por exemplo, não é bem um intermediário: ele pode não publicar a minha carta à redação e escolher outra. É direito dele, e se fizer isso de forma nociva a alguma pessoa, ela pode reclamar. Você tem de ver se quer ser um intermediário neutro em relação àquilo que se transporta, como é o carteiro, ou um intermediário de um pôster no meio da praça, por exemplo – que sabe que colocou ali uma fotografia ofensiva, por exemplo. Um dos motivos que levaram ao Marco Civil foi quando tiraram o YouTube do ar (por determinação judicial) porque havia ali um vídeo da Daniella Cicarelli. O juiz disse ‘como o vídeo reapareceu, tira o YouTube do ar’. Não parecia razoável, assim como alguns anos atrás tiraram o WhatsApp do ar por outro motivo. Não estou defendendo plataforma, mas precisamos definir claramente onde está a imunidade e onde começa a responsabilização.
O governo justifica que o projeto dá balizas para os provedores fazerem a moderação. Vale a pena regular esse tipo de detalhe ou as plataformas devem ter autonomia para moderar o conteúdo?
Em primeiro lugar, as plataformas devem ser transparentes sobre quais são as regras de uso para se entrar em uma delas. Quando se diz que não pode nada ‘inadequado’, o que isso quer dizer? Outra coisa complicada é dizer simplesmente que não se quer fake news. Não há um detector de mentira que diga o que é e não é verdade. A mentira factual é mais clara. Se você falar que o Brasil tem 50 mil habitantes, a mentira é factual. Outras estão em uma região cinzenta, e eu não queria que fossem usadas como muleta para alguém dizer que removeu algo porque ‘achou que era mentira’. Há coisas que, dependendo de qual especialista você consulta, um diz que pode ser e o outro diz que pode não ser. A Crítica da Razão Pura, de Immanuel Kant, já dizia que a verdade é suscetível e depende dos seus sentidos, essa é uma área delicada. É preciso definir com cuidado o que é fake news, e não pode deixar na mão da plataforma todo o poder de dizer o que é verdade e o que é mentira. Estaríamos entregando a moral na mão deles.
Qual é o vácuo na legislação que poderia ser preenchido na regulação desse tema?
Existe um ponto a ser preenchido. O Marco Civil da Internet, ao dizer que o intermediário do conteúdo é imune, não pode envolver aqueles intermediários editoriais. Ninguém pode ter a vantagem de ser imune à responsabilização e, ao mesmo tempo, ter capacidade de editar. As plataformas estão jogando um jogo de ganha-ganha. Se a moderação for exercida de forma realmente editorial, ela deixa de ser imune. Essa discussão precisa acontecer, e está ocorrendo também nos EUA. Já temos um outro projeto de lei no Congresso que debate o tema, que trata de fake news. Ao menos isso não foi uma decisão de cima para baixo na forma de uma Medida Provisória, o que seria uma barbaridade. Não entendo nada de Direito, mas seria esquisito ter essa decisão dessa forma quando tivemos uma discussão geral e ampla, como foi no Marco Civil. Esse era o principal defeito do que foi tentado antes, e agora me parece sensato que a Câmara discuta isso e chegue a alguma conclusão. Se tiver defeitos, espero que seja consertado na Câmara.
O projeto tem 24 situações em que haveria “justa causa” para a exclusão de conteúdo. Casos de “apologia implícita” a drogas, por exemplo, poderiam ser punidos. O governo diz que visa proteger usuários de censura, mas não poderia ocorrer justamente o contrário? O que é uma “apologia implícita”?
É claro que isso precisa ser melhor discutido, é um tema extremamente complicado. Por exemplo, sabemos que vários escritores e artistas famosos eram adeptos a uso de drogas. Quando se inclui o termo “implícito” tudo fica mais complicado. Isso quer dizer que temos de vetar referências a livros de quem é conhecido por usar algum tipo de estimulante? Eu teria muito cuidado. Estamos entrando numa época um tanto quanto obscurantista. E temos de evitar que, nessa briga contra o obscurantismo, nos tornemos obscurantistas. Nietzsche tem uma frase boa para isso. Ele dizia que “se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você”.
Como lidar com crimes cometidos nas redes sociais, discurso de ódio e contra o estado democrático de direito? É pela via jurídica, em meio a tantas reclamações que o Judiciário está sobrecarregado?
É um problema extremamente complicado de se discutir. Em primeiro lugar, sou evidente favorável à liberdade de expressão. Os limites dessa liberdade estão nas responsabilidades que ela gera. As pessoas podem xingar qualquer um, mas é evidente que terão de pagar por aquilo. Se você costurar a minha boca, não vou conseguir xingar ninguém, mas acho que não é essa a ideia. O ideal é que se puna quem usa a liberdade de expressão de forma errada. A priori, não se pode impedir que alguém se exprima. A punição deve ser a posteriori, porque qualquer um que tenha boca pode dizer barbaridades. Desgraçadamente, a internet tornou isso extremamente alastrado. Na internet é muito mais fácil difamar alguém, é só começar a falar um monte de bobagem. Podemos discutir se devemos impedir alguém de falar bobagem ou que isso seja punido. Eu acho melhor a segunda opção, desde que de forma célere, do que a priori impedir que alguém fale.
Não quero, absolutamente, defender quem se utiliza de discursos de ódio ou coisas desse tipo. Temos de dizer o que é legal e o que não, se não vamos cair nessa coisa de repassar a alguém o poder de direito e de polícia. Eu não posso prender um cara que entrou na minha sala porque ele falou um treco que eu acho descabido. Eu sei que isso vai sobrecarregar a Justiça e etc, mas o que podemos fazer? Não podemos inverter os direitos porque isso sobrecarrega A, B ou C. Tem de dar um jeito de tornar isso mais ágil, também não podemos resolver um problema criando outro. Não posso delegar isso a um provedor de internet que já tem um poder econômico gigantesco que, além de tudo, vai poder dizer o que eu posso ou não ver.
Correções
Diferentemente do informado anteriormente, Demi Getschko é um dos integrantes do Comitê Gestor da Internet, e não presidente. A informação foi corrigida.
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