A proposta de abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar a atuação de ONGs que atendem dependentes químicos na Cracolândia, com foco no padre Júlio Lancellotti, antecipou o confronto eleitoral na Câmara de São Paulo, gerando uma disputa entre os apoiadores do prefeito e pré-candidato à reeleição, Ricardo Nunes (MDB), e os aliados do pré-candidato do PSOL à Prefeitura, o deputado Guilherme Boulos.
Em resposta à possível instalação da CPI das ONGs, a Bancada Feminista, mandato coletivo do PSOL na Câmara, trabalha para reunir as 19 assinaturas necessárias a fim de apresentar um pedido de abertura de CPI contra a gestão de Nunes. O objetivo da comissão será investigar o aumento da população em situação de rua e as ações da administração municipal voltadas a essa questão. O documento acusa a Prefeitura de promover “políticas hostis” contra essa população.
Questionada pelo Estadão, a Prefeitura informou, por meio de nota, que as redes de saúde e assistência social da capital contam com 1.486 vagas destinadas ao tratamento de dependentes químicos. “Além dos serviços de abordagem e oferta de tratamento e acolhimento, realizados diariamente na região central da capital, há contratos com os vários serviços voltados a este público”, diz o texto. (Leia mais abaixo).
O pedido de abertura da CPI pelo PSOL surge em meio à campanha liderada pelo vereador Rubinho Nunes (União) contra o padre Júlio Lancellotti nas redes sociais. Rubinho, aliado do prefeito e proponente da CPI das ONGs, acusa tanto as organizações não governamentais quanto o pároco de participarem de uma suposta “máfia da miséria” que “explora os dependentes químicos”. Ele tem explorado a proximidade entre Lancellotti e Boulos para atacar o pré-candidato do PSOL.
CPIs precisam ser aprovadas em plenário
A vereadora Sílvia Ferraro (PSOL), da Bancada Feminista, admite que o pedido de CPI para investigar as políticas da Prefeitura para a população em situação de rua é uma resposta à proposta de CPI das ONGs. Ela conta que, devido ao recesso parlamentar, as assinaturas ainda não foram recolhidas. Porém, calcula que precisará do apoio de apenas três vereadores da base do prefeito, visto que a oposição é formada por 16 parlamentares, sendo oito do PT, seis do PSOL e três do PSB.
Se a bancada do PSOL conseguir as assinaturas necessárias, o pedido de criação da CPI será avaliado no colégio de líderes da Câmara e, em seguida, votado no plenário, exigindo pelo menos 28 votos. Mesmo com as assinaturas garantidas, a aprovação dos vereadores em plenário também é necessária para a CPI das ONGs. Neste contexto, a instalação de ambas as comissões ainda é incerta, dependendo da formação de consenso no Legislativo paulistano.
O presidente da Câmara, Milton Leite (União), afirmou que o tema será tratado no colégio de líderes, na volta do recesso parlamentar. Ao menos quatro vereadores já anunciaram a intenção de retirar o apoio ao requerimento de Rubinho Nunes, o que coloca em dúvida a viabilidade da proposta. Além disso, membros da oposição negam qualquer discussão ou acerto prévio para a aprovação da CPI das ONGs e prometem obstruir o requerimento.
Campanha eleitoral antecipada
“Fizemos esse pedido para mostrar à população de São Paulo que a Câmara Municipal deveria investigar as razões por trás do fracasso das políticas públicas do prefeito Ricardo Nunes, ao invés de perseguir aqueles que auxiliam a população em situação de rua”, disse Sílvia, acrescentando que o requerimento de Rubinho tem um “caráter meramente eleitoreiro”.
Sílvia conta que, apesar de o pedido indicar que a CPI das ONGs tem como objetivo investigar o trabalho de organizações não governamentais, o discurso de Rubinho é direcionado contra Lancellotti e a pré-candidatura do PSOL. “De maneira indireta, seu objetivo é impactar a pré-candidatura de Guilherme Boulos, utilizando uma CPI com motivação eleitoral. Ele (Rubinho) está usando uma ferramenta legítima da Câmara para conduzir uma campanha eleitoral antecipada”.
Procurado pelo Estadão, Rubinho declarou que o papel de seu mandato é fiscalizar e investigar. “Não é porque é ano eleitoral, porque pode ou não prejudicar o Guilherme Boulos, que eu vou fazer ou deixar de fazer alguma coisa. A cidade de São Paulo é muito maior do que o Guilherme Boulos, é muito maior do que qualquer ONG, é muito maior do que o Lancellotti, é muito maior do que a Silvia e nosso trabalho não vai parar por isso”.
O que dizem o padre Júlio Lancellotti e as entidades
O padre Júlio Lancellotti afirma que se trata de uma ação legítima quando se instala uma CPI para investigar o uso de recursos públicos pelo terceiro setor, mas acrescenta que não faz parte de nenhuma organização conveniada à Prefeitura de São Paulo, e, sim, da Paróquia São Miguel Arcanjo.
O sacerdote diz ainda que seus trabalhos estão vinculados à Ação Pastoral da Arquidiocese de São Paulo, que, por sua vez, “não se encontra vinculada, de nenhuma forma, às atividades que constituem o objetivo do requerimento aprovado para criação da CPI em questão”.
A Craco Resiste, um dos alvos do vereador, informou que não é uma ONG e, sim, um projeto de militância que atua na região da Cracolândia para reduzir danos a partir de vínculos criados por atividades culturais e de lazer. “Quem tenta lucrar com a miséria são esses homens brancos cheios de frases de efeito vazias que tentam usar a Cracolândia como vitrine para seus projetos pessoais. Não é o primeiro e sabemos que não será o último ataque desonesto contra A Craco Resiste”, diz a entidade em nota divulgada nas redes sociais. A reportagem não conseguiu contato com o Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto, conhecida como Bompar, também mencionada por Rubinho.
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O que diz a Prefeitura de São Paulo
“A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Executiva de Projetos Estratégicos, informa que para atendimento a usuários de álcool e outras drogas em situação de vulnerabilidade possui convênios nas áreas da Saúde, Assistência e Desenvolvimento Social e Desenvolvimento Econômico e Trabalho. Ao todo, as redes de saúde e assistência social da capital contam com 1.486 vagas destinadas ao tratamento de dependentes químicos.
Além dos serviços de abordagem e oferta de tratamento e acolhimento, realizados diariamente na região central da capital, há contratos com os vários serviços voltados a este público, como por exemplo os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD), o Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica, o Serviço de Cuidados Prolongados (SCP) e Unidades de Acolhimento (UA).
São ofertadas também 1.000 vagas no Programa Operação Trabalho (POT Redenção), que oferece capacitação profissional e ajuda estas pessoas a recuperarem sua autonomia financeira e serem reinseridas na sociedade. Hoje já são mais de 450 beneficiários que deixaram a Cracolândia e foram inseridos no mercado de trabalho.
A Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), por meio do Serviço Especializado de Abordagem Social (SEAS) IV, realiza abordagens diárias na região da Cracolândia, oferecendo acolhimento e encaminhamentos aos serviços da rede socioassistencial.
Durante as abordagens são ofertados encaminhamentos aos serviços da rede socioassistencial da Prefeitura, ao Poupatempo para resolução de questões documentais, e aos Serviços Integrados de Acolhida Terapêutica (SIAT), que integram o Programa Redenção, voltado para dependentes de drogas e álcool.
A Organização da Sociedade Civil (OSC) que administra este serviço em parceria com a secretaria é a Associação Comunitária de São Mateus (ASCOM). A SMADS destaca ainda que não há parceria entre a pasta e a Pastoral do Povo de Rua de São Paulo.
O prefeito Ricardo Nunes não interfere em decisões da Câmara, procurando manter de forma transparente a independência entre o Executivo e o Legislativo.”
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