BRASÍLIA — Com a deflagração da Operação Tempus Veritatis, que apura uma suposta tentativa de golpe de Estado tramada pela cúpula do governo Jair Bolsonaro (PL), a Polícia Federal (PF) revelou detalhes de uma investigação que coloca o ex-mandatário no centro das articulações golpistas. Por meio de depoimentos de investigados, a PF tem fechado ainda mais o cerco sobre Bolsonaro e seus aliados.
Os ex-comandantes do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, e da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Carlos Almeida Baptista Junior, estiveram entre os ouvidos pela PF e reforçaram que o próprio ex-presidente convocou reuniões no Palácio do Alvorada para apresentar hipóteses de usar instrumentos jurídicos como Garantia da Lei e da Ordem (GLO) estado de defesa e estado de sítio para impedir que Luiz Inácio Lula da Silva (PT), vitorioso no segundo turno das eleições de 2022, tomasse posse.
O plano principal, diz a PF, envolvia a elaboração de uma minuta de golpe, documento que declararia estado de sítio no Brasil e, ato contínuo, decretaria operação de Garantia de Lei e Ordem (GLO). Em versões iniciais, segundo a Polícia, o documento chegou a incluir a prisão dos ministros do STF Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes e do presidente do Senado e do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
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Tanto Freire Gomes como Baptista Júnior dizem que se recusaram a participar da empreitada golpista. O ex-comandante da Marinha Almir Garnier Santos, por sua vez, foi apontado pelo dois chefes das outras Forças e também pelo ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, como simpático à empreitada golpista, já que teria disposto de suas tropas para a realização do ato. Diferente de Freire Gomes e Baptista Júnior, Garnier optou por ficar calado ao depor à PF – assim como Bolsonaro, os generais Walter Braga Netto e Augusto Heleno, além de outros 10 investigados.
Veja quem são os principais envolvidos e investigados na Operação Tempus Veritatis, o que a PF descobriu em apurações e o que eles falaram em depoimento:
Jair Bolsonaro
Então presidente da República, Jair Bolsonaro reforçou, tanto em público quanto nos bastidores, descrença nas urnas eletrônicas e no processo eleitoral brasileiro. Ele repetiu, em diferentes oportunidades, uma teoria da conspiração sem nenhuma evidência de que as eleições presidenciais de 2014 e de 2018 foram fraudadas para favorecer candidatos do PT — ainda que, em 2018, ele mesmo tenha vencido. Ele voltou a repetir o discurso em 2022 e, durante seu período na presidência, fez constantes declarações contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Em reunião ministerial de julho de 2022, obtida e divulgada pela PF, Bolsonaro dizia que Lula ganharia as eleições e que as pesquisas eleitorais estariam refletindo “números que estão dentro dos computadores do TSE”. Na mesma ocasião, clamou seus ministros a agirem. “Eu vou entrar em campo usando o meu exército, meus 23 ministros”, afirmou.
Investigados disseram, em depoimento, que Bolsonaro reuniu comandantes das Forças Armadas para expor a minuta do golpe e cogitou a possibilidade de decretar a Garantia de Lei e Ordem (GLO), estado de defesa ou declaração de estado de sítio. Investigações da PF mostram que o entorno do ex-presidente se dividiu em núcleos para embasar uma operação pelo golpe de Estado e que o próprio Bolsonaro participou da redação da minuta apresentada aos comandantes.
Bolsonaro manteve-se em silêncio no depoimento à Polícia Federal.
Mauro Cesar Barbosa Cid
Ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid era uma das pessoas mais próximas do ex-presidente. Segundo investigação da PF, Cid participou da articulação para redigir a minuta e dialogou com generais e outros militares sobre o documento.
Em depoimento dado à Polícia Federal na segunda-feira, 11, Cid confirmou que teve uma série de encontros com Bolsonaro e com a cúpula para debaterem um golpe de Estado.
O militar ficou preso entre maio e setembro de 2023 num batalhão da Polícia do Exército em Brasília e fez uma delação premiada, que abrange informações de interesse dos inquéritos sobre as joias sauditas, a suposta fraude na carteira de vacinação do ex-presidente e o plano de golpe de Estado.
Augusto Heleno Ribeiro Pereira
Ex-ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), o general Augusto Heleno Ribeiro Pereira compunha o núcleo de inteligência paralela de Jair Bolsonaro, que atuava para coletar dados e informações que pudessem ajudar na tomada de decisões do ex-presidente e seus aliados, segundo a PF. O relatório do órgão ainda aponta que, além de buscar informações, essa equipe monitorava Alexandre de Moraes e outras autoridades.
O ex-comandante da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior relatou que Heleno ficou “atônito” ao escutar a negativa dele em participar de um eventual golpe de Estado, em uma conversa em dezembro de 2022. Na reunião de julho daquele ano, o general falou sobre “virar a mesa” antes das eleições. À PF, manteve-se em silêncio.
Walter Braga Netto
General da reserva, Walter Braga Netto foi o candidato à vice-presidência na chapa de Bolsonaro em 2022. Ele também foi ministro da Defesa entre 2021 e 2022. Segundo a PF, ele integrava um núcleo responsável por incitar militares a aderirem ao golpe de Estado.
Mensagens obtidas pela PF mostram que ele chamou o general Freire Gomes, comandante do Exército, de “cagão” e orientou a “oferecer a cabeça dele”. Braga Netto classificou Baptista Júnior de “traidor da pátria” e disse para “infernizar a vida dele e da família”.
Em novembro, depois da derrota para a chapa de Lula nas eleições, ele se dirigiu a bolsonaristas após visitar Bolsonaro no Palácio da Alvorada e fez uma recomendação que insinuou uma reviravolta. “Não percam a fé, é só o que eu posso falar agora”, afirmou. Também manteve-se em silêncio na oitiva da PF.
Almir Garnier Santos
Chefe da Marinha, o almirante Almir Garnier Santos foi o único dos principais comandantes das Forças Armadas a aderir ao golpe, segundo outros depoentes. Tanto Cid como Freire Gomes e Baptista Júnior disseram à PF que ele colocou tropas à disposição de Bolsonaro para impedir a posse de Lula. Garnier ainda foi o único dos então comandantes a não participar da cerimônia de troca de comando das Forças, quando foram substituídos por militares indicados por Lula.
Garnier também prestou depoimento à Polícia, mas optou por ficar em silêncio.
Marco Antônio Freire Gomes
Ex-comandante do Exército, o general Marco Antônio Freire Gomes era tido por pessoas próximas a Bolsonaro como a peça mais importante para o golpe de Estado, segundo mensagens obtidas pela PF. O militar, no entanto, não embarcou na empreitada golpista.
Em depoimento à PF, Freire Gomes disse que Bolsonaro reuniu-se com ele para apresentar argumentos jurídicos que permitiriam uma ruptura democrática. Os depoimentos indicam que ele recusou participar e, segundo o brigadeiro Baptista Júnior, Freire Gomes ainda ameaçou prender o então presidente, caso ele fosse adiante com o golpe.
O general então começou a ser pressionado por outros militares golpistas. “Após verificarem que comandantes não iriam aceitar qualquer ato contra democracia, começaram a realizar ataque pessoais”, afirmou Freire Gomes à Polícia Federal.
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Carlos de Almeida Baptista Júnior
Ex-comandante da Aeronáutica, o tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior foi outro opositor da ideia de golpe aventada por Bolsonaro e aliados, segundo depoimentos de Freire Gomes e Mauro Cid. Em seu depoimento à PF, Baptista Júnior disse que alertou Bolsonaro de que não houve fraude na eleição em 2022.
Foi ele quem relatou à PF a ameaça de prisão de Freire Gomes a Bolsonaro. Essa conversa aconteceu, segundo ele, em dezembro de 2022, em reunião convocada pelo ministro da Defesa, Paulo Sérgio de Oliveira.
Baptista Júnior também disse ter recusado receber a minuta do golpe e afirmou ter sido abordado pela deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) durante evento da Força Aérea, com exigência para não “deixar o presidente Bolsonaro na mão”.
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Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira
Ex-ministro da Defesa no governo Bolsonaro, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira largou a chefia do Exército para substituir Braga Netto na Esplanada dos Ministérios. Ele é apontado, em depoimentos dados à PF, como um articulador de encontros com chefes das Forças Armadas para levar o apoio da caserna ao golpe de Estado. Ele optou por manter o silêncio e não depor.
O general também foi um dos mais vocais aliados de Bolsonaro nos ataques às urnas em 2022. Em sua fala na reunião ministerial de julho daquele ano, disse que a comissão eleitoral do TSE era para “inglês ver” e afirmou que se sentia na “linha de contato com o inimigo” durante a disputa eleitoral. Disse também que estava utilizando as Forças Armadas para questionar a atuação do TSE como forma de garantir a reeleição de Bolsonaro.
Após ordem de Bolsonaro à época, ele foi a Câmara e ao Senado para questionar integridade do sistema eleitoral, propor um plano de ‘votação paralela’ e intensificar ataques ao sistema eleitoral.
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Estevam Cals Theóphilo Gaspar de Oliveira
O ex-chefe do Comando de Operações Terrestres do Exército (Coter), general Estevam Cals Theóphilo Gaspar de Oliveira foi apontado em investigações da Polícia Federal como “responsável operacional” por mobilizar os “Kids Pretos”, Forças Especiais do Exército, para, entre outras coisas, prender Alexandre de Moraes, caso Bolsonaro assinasse o documento do golpe. Ele nega o plano.
Em depoimento à PF, Theóphilo confirmou encontros com Bolsonaro no Palácio da Alvorada entre novembro e dezembro de 2022, mas negou que tenha conversado sobre a minuta golpista.
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Filipe Garcia Martins
Não só de militares estava composto o grupo que, segundo a PF, se aliou para a tentativa de golpe que manteria Bolsonaro no poder.
A Polícia Federal indica que o ex-assessor da Presidência para Assuntos Internacionais Filipe Garcia Martins participou de um núcleo jurídico, que fazia o assessoramento legal para fundamentar o ato golpista. Foi ele quem entregou a Bolsonaro a minuta que basearia a declaração de GLO.
Em depoimento divulgado na última sexta-feira, 15, Martins ficou em silêncio na maior do tempo. Ele limitou-se a negar que tenha saído do Brasil no final do governo Bolsonaro – motivo pelo qual ele foi preso preventivamente em fevereiro.
Martins veio da militância virtual do bolsonarismo, integrou o gabinete do ex-presidente como assessor especial e foi o pivô de uma polêmica por um gesto atribuído a supremacistas brancos. Também era considerado um dos mentores intelectuais do chamado “gabinete do ódio”, grupo que usava as redes sociais para difundir desinformações sobre adversários do ex-presidente.
Valdemar Costa Neto
Outro civil implicado na investigação é Valdemar Costa Neto, presidente nacional do PL, partido de Bolsonaro. A sua sigla entrou com uma ação no TSE após a derrota de Bolsonaro questionando o resultado das eleições de 2022 e pediu a anulação de 279,3 mil votos registrados em urnas eletrônicas em razão de um suposto “mau funcionamento” dos dispositivos.
À PF, Valdemar disse que foi pressionado a fazer a contestação e reconheceu que não foi apresentado “nada consistente”. O PL foi multado em R$ 22,9 milhões por Alexandre de Moraes por “má-fé”
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Anderson Torres
Ex-ministro da Justiça no governo Jair Bolsonaro, Anderson Torres negou ter participado de reuniões sobre a possibilidade de golpe de Estado à Polícia Federal. Militares que depuseram à PF, porém seguem caminho oposto. Freire Gomes e Baptista Júnior disseram que Torres esteve presente em pelo menos uma reunião com Bolsonaro e que ele pontuou aspectos jurídicos que dariam suporte às medidas de exceção estudadas por Bolsonaro.
Em uma operação de busca e apreensão na casa do ex-ministro, a Polícia Federal descobriu a existência de uma minuta que decretaria o golpe de Estado.
Torres, que era secretário de Segurança Pública do Distrito Federal no início de 2023, foi preso após os ataques golpistas do 8 de Janeiro por determinação de Alexandre de Moraes. Torres havia viajado em recesso para os Estados Unidos dias antes da ofensiva de manifestantes contra a sede dos Três Poderes. Ele foi solto quatro meses depois, em maio.
Em sua fala durante a reunião de julho de 2022, o ex-ministro indicou ter montado um grupo na Polícia Federal para pressionar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) durante o processo de preparação das eleições presidenciais.
Outros envolvidos
A PF ouviu ainda outros envolvidos na tentativa de golpe. Entre os que ficaram em silêncio estão Marcelo Câmara, ex-assessor especial de Bolsonaro, que seria um dos responsáveis por um núcleo de inteligência paralela; Amauri Feres Saad, advogado apontado como um dos autores da minuta golpista; o padre José Eduardo de Oliveira e Silva, citado como membro do “núcleo jurídico” do plano de golpe; o major da reserva do Exército, Ailton Gonçalves Moraes Barros, que teria ajudado a pressionar e a coordenar ataques a comandantes que não queriam aderir ao plano golpista.
Também fazem parte do grupo dos que silenciaram o major Rafael Martins de Oliveira, que, segundo a PF, fazia parte do “núcleo operacional” que dava suporte a ações golpistas. Os militares Angelo Martins Denicoli, Helio Ferreira Lima e Mário Fernandes também não falaram. Eles são apontados como membros de um “núcleo de desinformação”, que teria produzido e espalhado notícias falsas para deslegitimar o processo eleitoral e, segundo a PF, “criar o ambiente propício para o Golpe de Estado”.
Entre os aliados que falaram estão Tércio Arnaud, ex-assessor da Presidência, apontado pela PF como integrante do núcleo de desinformação e ataques ao sistema eleitoral. Os militares Bernardo Romão Corrêa Netto, Cleverson Ney Magalhães, Guilherme Marques Almeida, Laercio Virgílio e Sergio Ricardo Cavaliere de Medeiros também responderam às perguntas, assim como o empresário Eder Lindsay Magalhães Balbino. Eles negaram participação na empreitada golpista. O coronel da reserva Laercio Virgilio, no entanto, disse em depoimento à PF que a prisão de Moraes serviria para ‘normalidade institucional’.
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