GENEBRA - A cooperação entre os serviços de inteligência do Cone Sul não foi apenas um apoio político mútuo entre regimes ditatoriais, mas uma ação de fato coordenada entre militares dos países da região. Documentos da ONU obtidos com exclusividade pelo Estado revelam que uma das ações conjuntas que mais chamou a atenção da entidade foi o sistema de envio de fotos de suspeitos entre o regime brasileiro e a repressão argentina.
Desde domingo, o jornal O Estado de S. Paulo e o Portal Estadão vêm publicando uma série de reportagens baseadas nas revelações contidas em arquivos mantidos pela ONU em Genebra, justamente sobre a situação de direitos humanos e dos refugiados no Cone Sul.
Em mais uma revelação, os documentos escancaram como a cooperação entre os regimes da Argentina e Brasil era operacional e incluía um minucioso trabalho de coleta de fotos e informações. Para isso, o governo brasileiro não hesitou nem mesmo em criar exigências aparentemente burocráticas para, na realidade, coletar fotos de opositores e enviar ao regime em Buenos Aires.
O Brasil exigia que estrangeiros renovassem seus vistos temporários a cada três meses, mesmo aqueles protegidos pela ONU. Mas, em troca do novo documento, ficava com as fotos 5 x 7 dos passaportes dados anteriormente e que agora estavam com suas datas vencidas.
Para a surpresa da ONU, essas fotos apareceriam em sessões de tortura na Argentina. Militantes que eram devolvidos pelo Brasil para a forças argentinas eram obrigados a reconhecer seus companheiros, por meio de fotos 5 x 7 que os militares argentinos misteriosamente dispunham daquele vivendo no Brasil.
A constatação do sistema foi primeiro informado à ONU por dois argentinos que buscava a proteção da ONU para ser retirada do Brasil e enviada para a Europa. Pelo relato, ambos haviam sido torturados na Argentina e se deparado com as fotos fornecidas pelas forças brasileiras ao regime argentino.
Em junho de 1979, um telegrama escrito pelo escritório da ONU no Rio de Janeiro relata como prisioneiros na Argentina foram "confrontados com fotos tiradas de refugiados protegidos pela ONU nas ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro". "Eles também foram confrontados com fotos para passaportes brasileiros desses mesmos refugados", indicou. "Nossos refugiados devolvem fotos para a polícia brasileiras quando renovam seus vistos temporários", explicaria a ONU, indicando a fonte da coleta de fotos.
Brasileiros. Mas se exilados uruguaios e argentinos sofreram no Brasil, o mesmo ocorreu com brasileiros que pensaram que estavam protegidos deixando o País em direção a Buenos Aires ou Montevidéu.
Num telegrama de 19 de setembro de 1969, a ONU alertava para a existência de 18 brasileiros em situação de risco no Uruguai e um caso de um estudante brasileiro ameaçado na Argentina que precisaria ser levado para México, Chile ou Europa.
"O caso de 18 brasileiros que seguiram para o Uruguai, aos quais esforços foram feitos para que fossem para a Europa, nos foi alertado para indicar que existe de uma parte alguma relutância do Uruguai em oferecer asilo a essas pessoas e, de outro, algum temor da parte desses brasileiros de que não estariam a salvos da polícia brasileira, nem mesmo no Uruguai", indicou a ONU no telegrama.
"Até hoje, trabalhávamos com a consideração de que latino-americanos deixando um país por motivos políticos não tinham problemas em ser aceitos para residência em outro país da região. Mas nos questionamos se isso ainda é válido", indagava a ONU em 1969. "Isso parece ser o desenvolvimento de uma tendência", alertaria a entidade que, depois de alguns anos, comprovaria essa realidade.
Em 9 de julho de 1970, a suspeita se tornava realidade. "Existem rumores de que brasileiros tenham sido expulsos do Uruguai a seus países de origem ", alertava um telegrama urgente da ONU. O Conselho Mundial de Igrejas acabaria pagando pela fuga desse grupo para a Itália, poucas semanas depois.
Pelos documentos, não foram poucos os governos que tentaram retirar da região os brasileiros afetados pela repressão. Num telegrama interno da ONU de 20 de dezembro de 1977, a agência de refugiados faz um resumo da visita que havia recebido no dia 13 daquele mês pelo embaixador da Noruega, Peter Motzfeldt, ao Rio de Janeiro. O diplomata trazia a proposta de dar 60 vistos a prisioneiros brasileiros por "razões humanitárias". Mas a própria ONU alertou Oslo que o regime militar brasileiro "dificilmente" aceitaria isso e que, naquele mesmo ano, uma proposta similar da Casa Branca já havia sido recusada.
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