BRASÍLIA – Com a decisão do empresário Mark Zuckerberg, dono da big tech Meta, de acabar com o serviço de checagem de fatos nos Estados Unidos, o debate acerca da regulação das redes sociais no Brasil voltou à tona. Nos primeiros dias de 2025, o Supremo Tribunal Federal (STF) e a Advocacia-Geral da União (AGU) deram novos passos na discussão sobre a adequação das plataformas com a jurisdição brasileira. Ao mesmo tempo, o Congresso Nacional está alheio ao tema desde o engavetamento do PL das Fake News, em 2023.
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Mas segundo especialistas ouvidos pelo Estadão, cabe ao Legislativo definir novas regras caso haja necessidade de regular as plataformas virtuais. Eles apontam que se deve delimitar com cautela quais conteúdos serão considerados crimes virtuais e como será feita a fiscalização das redes sociais. Além disso, é preciso garantir um equilíbrio para proteger a liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, garantir o combate aos crimes digitais.
Em uma sinalização ao novo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, Zuckerberg decidiu acabar com o sistema de checagem de informações nas redes sociais da Meta: Facebook, Instagram e Threads. No vídeo em que anunciou as mudanças, o dono da big tech afirmou que a América Latina tem “tribunais secretos de censura”.
A decisão de Zuckerberg ocorreu ao mesmo tempo em que o STF está julgando duas ações que podem ampliar a responsabilização judicial das plataformas por conteúdos divulgados na internet. Reagindo ao anúncio da Meta, a AGU pediu que a big tech explicasse como as mudanças na política de moderação de conteúdos vão afetar o combate aos crimes como violência de gênero, racismo e homofobia nas plataformas.
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No Congresso Nacional, o lobby das big techs e a pressão da oposição ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fizeram com que o Projeto de Lei nº 2.630/2020, mais conhecido como “PL das Fake News” fosse engavetado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), em abril de 2023. Desde então, os parlamentares não voltaram a pautar uma possível regulação das redes sociais.
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Legislação brasileira sobre as redes sociais precisa ser ampliada para acompanhar IA e fake news
Especialistas em Direito Civil, Direito Constitucional e Direito Digital ouvidos pelo Estadão acreditam que a legislação brasileira sobre a atuação das redes sociais precisa ser ampliada com uma regulação que comporte as novas tecnologias de informação. Segundo eles, apesar de ser uma legislação avançada no contexto em que foi promulgada, o Marco Civil da Internet, de 2014, não abrange as particularidades do uso da inteligência artificial e o impulsionamento massivo de desinformação para benefícios políticos.
Para o professor de Direito e coordenador do Instituto de Tecnologia e Sociedade, João Victor Archegas, é possível criar, a partir do Marco Civil, novas regras para setores do mercado digital que surgiram após a promulgação da lei. Segundo o especialista, a lei que regulamentou os serviços digitais na União Europeia e que vigora desde o ano passado pode servir como exemplo na hora de se discutir a transparência e responsabilidade civil das plataformas.
“O Brasil precisa construir em cima desse piso algumas regulações específicas que tratam de particularidades do mercado digital que surgiram ou se aprofundaram desde que o Marco Civil foi aprovado em 2014. Isso inclui moderação de conteúdo em redes sociais, competição no mercado de novas tecnologias, transparência algorítmica, dentre outros pontos”, explicou Archegas.
Já Tainah Sales, Doutora em Direito Constitucional e professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), avalia que o Marco Civil era efetivo na época da sua criação. Porém, com a ampliação do debate sobre inteligência artificial, fake news e o surgimento de grupos extremistas na internet, a necessidade de uma nova legislação deve ser discutida.
“O Marco Civil foi criado quando o impacto desses fenômenos ainda não era tão significativo quanto é hoje. Inteligência artificial, responsabilidade das big techs, fake news, neonazismo não foram temas levantados naquelas discussões”, afirma.
STF e AGU discutem atuação das redes sociais enquanto Congresso está inerte sobre regulação
O texto do PL das Fake News buscou criar uma regulamentação que aumenta a responsabilidade das redes sociais por crimes digitais, além de exigir uma maior transparência por parte das plataformas. A proposta foi engavetada antes de ir à votação, devido à incerteza de uma aprovação no plenário da Câmara.
Em abril do ano passado, Lira afirmou que o projeto de lei, da forma que se apresentava, não iria “para canto nenhum” e estava “contaminado”. Em junho, ele instalou um grupo de trabalho para discutir o texto e encontrar formas de destravar a proposta. Até o momento, o colegiado não emitiu pareceres sobre o tema.
O Estadão procurou o deputado federal Hugo Motta (Republicanos-PB) e o senador Davi Alcolumbre (União-AP), favoritos para comandar a Câmara e o Senado a partir de fevereiro, para questionar se a regulação das redes sociais vai ser uma prioridade das Casas no próximo biênio, mas não obteve retorno.
Os especialistas apontam que uma regulação feita pelo Congresso daria maior legitimidade às mudanças frente à sociedade civil, algo que não é possível a partir de uma ação do Judiciário. Segundo Luís Fernando Plastino, doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), o Legislativo tem a oportunidade de criar normas que podem acabar com a insegurança de decisões judiciais contraditórias.
“O Congresso tem a oportunidade de trazer uma regulação geral que tenha passado por discussões generalizadas. Isso vai acabar com a insegurança da possibilidade de decisões pontuais que, às vezes, vão contra o esperado pelo mercado e pelas pessoas”, disse o especialista.
Enquanto os debates estão paralisados no Congresso, o Judiciário e o Executivo já se movimentaram para responder às medidas anunciadas por Zuckerberg – mesmo que sejam referentes, no momento, aos Estados Unidos. O presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, disse nesta quinta-feira, 23, que o julgamento sobre a responsabilização das redes sociais por crimes digitais vai ser pautado ainda no primeiro semestre deste ano. O placar na Corte é de 2 a 0 para aumentar a implicação das redes sociais em delitos cometidos por usuários.
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Após receber da Meta as explicações sobre o fim do sistema de checagem de fatos, a AGU organizou uma audiência pública nesta quarta-feira, 22, para discutir a nova política de moderação de conteúdo. Oito big techs foram convidadas a participar, mas todas declinaram do convite.
Para João Victor Archegas, a inércia do Congresso mostra que os parlamentares preferem deixar as polêmicas que cercam o tema para o Judiciário. Segundo ele, deixar o controle da regulação para o STF é um erro, pois apenas o Legislativo é capaz de criar uma política pública multissetorial, ouvindo representantes do Executivo, as big techs e grupos da sociedade civil, como jornalistas profissionais e órgãos que defendem os direitos digitais.
“O Congresso abriu mão e deixou o STF assumir a culpa por eventuais erros e excessos de uma eventual regulação. Esse é o foco errado, o Supremo não tem a arena política necessária para fazer uma política pública dessa magnitude. É preciso algo mais sólido, estável e de longo prazo”, afirmou.
Agência do Executivo para fiscalizar redes sociais é ideia arriscada
Um dos pontos do PL das Fake News que causou polêmica entre os parlamentares foi a entidade fiscalizadora autônoma. Ela seria criada pelo Poder Executivo e teria a responsabilidade de abrir um protocolo de segurança para atuar quando houvesse risco a direitos fundamentais ou se as plataformas descumprissem suas obrigações. O trecho sobre a implantação de uma agência reguladora foi cortado do projeto, que hoje está parado.
Para os especialistas ouvidos pelo Estadão, delegar ao Estado o poder de criar uma entidade responsável por fiscalizar os conteúdos publicados na internet pode trazer riscos para os direitos fundamentais dos usuários. Para Alexander Coelho, especialista em Direito Digital, caso haja a criação de um colegiado responsável por fiscalizar o cumprimento da lei, é necessário que ele seja amparado por princípios de transparência, imparcialidade e controle externo.
“O histórico de órgãos governamentais com amplos poderes de fiscalização nem sempre é positivo, especialmente quando esses poderes são usados como ferramentas para intimidar opositores ou regular o que não deve ser regulado: a liberdade individual”, disse o especialista.
Ao deixar de lado a criação de uma agência vinculada ao Executivo, os especialistas acreditam que o melhor seria estabelecer um órgão vinculado ao Ministério Público ou ao Judiciário, como forma de evitar o controle político da fiscalização.
Cautela e precisão são primordiais para garantir a liberdade de expressão
Para os especialistas, uma regulação pelo Congresso deve ser feita com cautela e precisão para que os dois pesos da balança sejam equilibrados: a proteção da liberdade de expressão e a necessidade de coibir os crimes digitais. O objetivo apenas será alcançado com definições claras do que é fake news e retirando do Estado e das big techs o dever de controlar os conteúdos publicados na internet.
De acordo com Alexander Coelho, os parlamentares precisam trabalhar em uma regulação das redes sociais que tenha uma “precisão cirúrgica” e “compromisso com os valores democráticos”. Para ele, além de definir critérios objetivos que vão definir os comportamentos considerados lesivos para o Estado Democrático de Direito, é preciso garantir ampla defesa aos usuários.
“Precisamos de diretrizes claras e objetivas que definam o que constitui um abuso ou crime digital. Medidas como obrigar plataformas a justificar a remoção de conteúdos, criar canais de contestação para usuários e assegurar transparência nos critérios de moderação são fundamentais”, disse Coelho.
Luís Fernando Plastino observa que, para proteger a liberdade de expressão, é necessário estabelecer um mecanismo de fiscalização que não dê poderes absolutos para o Estado e para as big techs determinarem quais conteúdos são ilícitos. Ele explica que isso evitará o uso partidário da regulamentação e uma censura prévia das plataformas, que podem retirar postagens que não são nocivas.
“Se o Estado se coloca de uma forma muito forte, você tem o risco de caminhar para a censura estatal. De outro lado, se você deixa um vácuo muito grande, você abre possibilidade de uma censura e até de um direcionamento de discurso das plataformas”, explicou Plastino.