O cidadão de bem parece não ter mesmo um dia de paz e, em 2023, vimos o retorno do sommelier de questões do Enem, figura curiosa que surgiu nos últimos anos com a mania nacional de a tudo politizar.
Tão logo o conteúdo do primeiro dia de exame foi divulgado voltou à baila o debate sobre as intenções ocultas por trás de questões da prova. Desta vez, coube aos ruralistas a missão de denunciar supostos problemas no teste.
Para a cúpula da poderosa bancada do agro, algumas das questões indicavam ativismo e patrulha ideológica do governo Lula. Uma das questões, por exemplo, trazia um texto que relacionava o desmatamento na Amazônia à atuação de pecuaristas, grileiros, madeireiros e ao cultivo da soja.
A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) pediu a anulação de perguntas e anunciou que convocaria o ministro da Educação a dar explicações. Causou enorme barulho. Não que tenha sido exatamente uma surpresa: é o tipo de discussão talhada para ganhar as redes e os palanques.
Sabedor do risco de o caso se transformar em balbúrdia política, o Palácio do Planalto baixou ordem para que os ministros se calassem, incluindo o da Agricultura. Carlos Fávaro, titular da pasta, arriscava atirar contra o próprio governo e encorpar a grita da FPA – dias depois, ele se limitou a dizer que, tivesse feito a prova, erraria algumas questões.
Auxiliares de Lula não queriam escalar a crise com uma bancada influente, articulada e que poderia ser decisiva em votações como a da reforma tributária – como, aliás, acabou sendo. Camilo Santana foi orientado a nada dizer e a jogar tudo para o Inep, encarregado da prova. Restou então ao presidente do órgão ocupar o front da defesa do Enem – e dos fatos. É que os fatos às vezes não agradam, mas eles são teimosos.
No caso da prova deste ano, quase 90% das questões usadas foram formuladas – veja só – durante o governo Jair Bolsonaro, esclareceu o chefe do Inep.
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O Enem não é feito de uma só vez por um grupo escolhido pelo governo de plantão. As perguntas são pensadas por professores selecionados previamente por meio de chamada pública. Uma vez elaboradas, passam pelo crivo de especialistas e são testadas em um grupo de alunos. Por fim, passam a compor um banco de questões.
Mas, além de certa dificuldade técnica para se colocar de pé um exame ideológico, chamou atenção, nesta última rodada de críticas ao Enem, o fato de as perguntas atacadas serem essencialmente questões de interpretação de texto.
Não se esperava ali que o estudante concordasse com o trecho citado, mas que demonstrasse capacidade de explicar o que o autor em questão quis dizer.
Fosse diferente, as mulheres deveriam se engajar em protestos enérgicos diante da pergunta 88. Nela, um texto afirma que felizes eram os tempos nos quais as moças “iam à missa de madrugada e, de dia, ninguém as via”.
Tal qual um connoisseur de vinhos dedicado a identificar taninos, os sommeliers de questões do Enem deveriam se dedicar a desbravar algumas minúcias da prova antes de se lançarem no diagnóstico sobre a nova safra do exame.
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