RIO – A República brasileira, que completa 130 anos neste 15 de novembro, “não foi e ainda não é” republicana, sendo duvidoso que construa um País viável, diagnostica, em tom sombrio, o historiador José Murilo de Carvalho. O pesquisador faz a avaliação pessimista em entrevista ao Estado, na qual analisa a trajetória histórica do regime no País, com percalços, golpes e revoluções e seu um saldo de instabilidade. Destaca que, a partir de 1930, apenas cinco presidentes eleitos democraticamente – inclusive Dilma Rousseff, em seu primeiro mandato – conseguiram concluir seus governos de forma regular. E tem explicação para os solavancos de nossa vida republicana.
“É a entrada de povo no sistema”, diz ele, destacando a estabilidade formal da República Velha, quando a participação popular inexistia ou era escassa.
O historiador destaca que o Exército, desde a Proclamação da República, se considera tutor do regime que ajudou a criar. A tutela castrense, afirma, foi reaberta no Brasil pela crise que levou ao impeachment em 2016. Manifestou-se, diz, em episódios como os tuítes do agora ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas contra possíveis decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que poderiam levar à libertação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para José Murilo, a profissionalização das Forças Armadas, com a renúncia à política, está incompleta. O papel político dos militares, lembra, foi inscrito em todas as Constituições republicanas, à exceção da Carta de 1937.
“O artigo 142 confere às Forças Armadas o papel de garantia dos poderes constitucionais, isto é, quase de um Poder Moderador.”, ressalta.
José Murilo rejeita que esse papel de moderação seja do Supremo Tribunal Federal, embora reconheça que a Corte assumiu protagonismo inédito nos últimos anos da República. Lembra, porém o desgaste e perda de respeito público por causa do "ativismo" de ministros que, alerta, "escrevem em jornais, dão entrevistas, manifestam sua posição fora dos autos, envolvem-se em disputas pessoais".
“Ironicamente, o poder tradicionalmente menos respeitado segundo pesquisas de opinião pública, o Legislativo, é que vem ganhando algum respeito”, avalia.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
A República no Brasil nasceu militar e autoritária, foi dominada por oligarquias, teve as ditaduras do Estado Novo e militar, um suicídio e duas renúncias, dois impeachments, revoluções e golpes. O que explica uma trajetória tão acidentada?
É preciso distinguir. A Primeira República foi estável. Só houve a renúncia do primeiro presidente e a deposição do último numa revolução. Ela só teve uma Constituição que só foi emendada uma vez. A instabilidade começou após 1930.
Dos 37 presidentes empossados no Brasil, apenas onze receberam seus mandatos de eleições oficialmente diretas, sob normalidade pelo menos na forma, e passaram o cargo para sucessores também eleitos, abstraindo-se aí o esquema coronelista de fraudes da República Velha. No caso dos vices, oito tomaram posse no lugar dos titulares – cinco por motivos políticos, não apenas por morte do titular. Por que toda essa instabilidade? Os perdedores das eleições não se conformam?
Contando a partir de 1930, quando começou a instabilidade, nos quase 90 anos seguintes apenas cinco presidentes, contando o primeiro mandato da Dilma, eleitos democraticamente completaram seus mandatos. A melhor explicação que acho para a instabilidade pós-1930 é a entrada de povo no sistema, tumultuadamente nos anos 30, eleitoralmente depois. Até 30, não havia povo eleitoral, cerca de 5% da população votavam. Depois de 1945, houve invasão de povo via eleitoral. Hoje 70% da população votam.
Desse ponto de vista da instabilidade, é possível comparar nossa República com a de algum outro país ou o Brasil é único?
Revoltas, agitações, crises políticas, golpes de Estado não são jabuticaba. A instabilidade é endêmica em quase todos os países da América Latina e da África.
Somados os governos chefiados por oriundos das Forças Armadas – Deodoro, Floriano, Hermes, Dutra, os cinco ditadores militares, a Junta de 69 – foram até agora 35 anos de governos comandados por militares, 26% dos 130 anos republicanos. Quer dizer, de cada quatro anos de República, um foi sob mandatário militar, sendo 25 sob autoritarismo. Como explicar esse papel dos militares?
O Exército proclamou a República e sempre se considerou seu tutor. Mas, salvos os anos iniciais da Primeira República, não tinha coesão interna para se impor às oligarquias civis. Foi a partir de 1930, e sob a liderança do general Gois Monteiro, que se aparelhou-se para se transformar em ator político relevante, no que foi quase sempre seguido pela Marinha e, mais tarde, pela Aeronáutica.
A República brasileira surge muito de uma crise dos militares com o poder civil no Império. Essa crise, de certa forma, foi atualizada na República, com a subordinação do poder militar ao poder civil sendo testada, até o golpe de 1964 e o regime militar?
Embora só a partir de 1930 o Exército tenha adquirido musculatura para intervir, todas as constituições republicanas, com a única exceção da ditatorial de 1937, previam, e ainda preveem, atuação política dos militares. E é preciso não esquecer que a partir do fim do Estado Novo até 1964 a tutela militar se exerceu em alianças com setores da sociedade. O golpe de 1964 foi civil-militar.
O senhor não avalia que essa crise parecia ter sido resolvida pelo próprio regime militar, com as reformas de Castello Branco restringindo o tempo de generalato e com a demissão do ministro Sylvio Frota pelo presidente Ernesto Geisel?
As reformas mencionadas consolidaram a unidade das Forças Armadas, excluindo opositores e militares-políticos como Juarez, Cordeiro, Eduardo Gomes, antigos “tenentes”. Eliminadas essas lideranças internas e a oposição interna, a corporação fortaleceu-se como ator político.
Isso explicaria a ausência dos militares da política por 30 anos após a volta aos quartéis? Ou foi a Constituição de 1988 que enquadrou os quartéis?
A prorrogação da ditadura, em meio a crise econômica com inflação alta, baixo crescimento econômico, conflitos internos à corporação e sob pressão de movimentos civis, tornaram a ditatura disfuncional para as próprias Forças Armadas. Mesmo assim, os militares conseguiram manter na Constituição de 1988 a cláusula de tutela. O artigo 142 confere às Forças Armadas o papel de garantia dos poderes constitucionais, isto é, quase de um Poder Moderador. A partir daí, intervir ou não intervir ficou dependendo da percepção por elas da gravidade das crises políticas.
Com o governo Bolsonaro, os militares permanecem como ou voltam a ser uma questão não-resolvida na República?
Embora a presença de militares no governo não lhe confira caráter militar, a tutela permanece como questão não resolvida. A profissionalização das Forças Armadas, isto é, a renúncia à interferência política, embora bastante avançada na Marinha e na Aeronáutica, continua incompleta.
O governo Bolsonaro reabre essa questão de participação militar na política?
O que reabriu a questão foi a crise política do impeachment. Novas crises vão gerar novas intervenções. Lembre-se da intervenção feita pelo comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, às vésperas de um julgamento pelo STF de um pedido de habeas corpus a favor de Lula. Na declaração, o general referiu-se à missão institucional do Exército.
O senhor avalia que, mesmo após o governo Bolsonaro, os militares manterão o protagonismo que reassumiram a partir de 2019?
Manterão a convicção de que a Constituição lhes garante um papel político. Acabamos de ter novo alerta do mesmo general Villas Bôas, agora na reserva, mas parte do governo, às vésperas de decisão do STF sobre a prisão em segunda instância.
Outra peculiaridade brasileira são os sistemas partidários. Enquanto outros países têm partidos tradicionais, com décadas de existência, a República brasileira teve sistemas partidários peculiares. Os partidos da República Velha não ressurgiram na República Populista, e os partidos da República Populista não renasceram na Nova República. Por que temos essa dificuldade para perenizar partidos?
Partidos com efetiva participação popular tivemos só a partir de 1945. A partir dessa data, eles passaram a se consolidar rapidamente, com forte crescimento do Partido Trabalhista Brasileiro. Em ambiente contaminado pela Guerra Fria, no entanto, as propostas reformistas do governo de João Goulart, sobretudo a da reforma agrária, foram vistas como ameaça comunista. O golpe de 1964 interrompeu a formação dos partidos. Depois, e por 21 anos, só houve partidos consentidos, sem poder efetivo de representação. Boa parte de nossos políticos de hoje formou-se durante esse período. A representação para eles era, e talvez ainda seja, apenas um negócio, um meio de enriquecimento pessoal.
A falta de partidos é o motivo de não termos um regime parlamentarista?
Sem um sólido sistema partidário não pode haver parlamentarismo. E o voto proporcional, embora mais democrático, favorece a fragmentação da representação.
Fala-se em crise de representação e aponta-se para o Congresso como um dos centros dessa crise. Mas essa crise não é permanente? Não tivemos sempre uma distância grande entre Legislativo e o povo?
É um grande problema. O País tem uma das mais generosas franquias eleitorais do mundo, com voto aos 16 anos, e adota a obrigatoriedade do voto, fazendo com que a participação seja alta. Como é, então, que o Congresso, assim constituído, não produz uma legislação que atenda aos interesses da grande maioria dos eleitores que são vítimas de um dos sistemas mais desiguais do mundo? No máximo, votam-se medidas assistencialistas, meramente distributivas, que não tocam nas bases estruturais da desigualdade.
Há quem compare o papel do STF ao do Poder Moderador no Império. O que o senhor acha disso?
Pela Constituição, seria mais adequado dizer que o Poder Moderador cabe às Forças Armadas, garantir os poderes constitucionais. O STF ganhou respeitabilidade graças aos processos como o do Mensalão e da Lava Jato. Mas ele também vem se desgastando e perdendo respeito público pelo ativismo de ministros que escrevem em jornais, dão entrevistas, manifestam sua posição fora dos autos, envolvem-se em disputas pessoais. Ironicamente, o poder tradicionalmente menos respeitado segundo pesquisas de opinião pública, o Legislativo, é que vem ganhando algum respeito.
Houve outras épocas na história brasileira na qual o STF tivesse tanto protagonismo?
Que me ocorra, não.
E o Ministério Público?
Ficou muito fortalecido com a autonomia que lhe foi conferida pela Constituição de 1988. Tem tido papel importante no combate a práticas políticas não republicanas como as denunciadas no Mensalão e da Lava Jato. Mas, como tudo entre nós, até o que é bom acaba sendo mal feito. Práticas arbitrárias por parte de promotores vêm pondo em risco o êxito do que tem sido uma das maiores ações republicanas entre nós, a de tornar a Justiça igual para todos levando à condenação réus do andar de cima, nunca antes atingidos.
Um de seus livros, “Os Bestializados”, tem como subtítulo “O Rio de Janeiro e a República que não Foi”. O senhor acha que temos uma república não republicana?
Nossa República não foi e ainda não é. No início, nem povo tinha. Hoje tem povo, tem democracia, mas não tem valores republicanos que se concretizam em boa governança, separação do público e do privado, igualdade perante a lei. Continua viciada por velhas práticas patrimonialistas, nepotistas, clientelísticas, corporativistas. Temos um sistema político republicano sem cidadãos e práticas republicanas. Continua não sendo a república sonhada por seus propagandistas no século XIX.
A República então fracassou?
No sentido de não ter construído um país viável, com índices toleráveis de desigualdade econômica, de escolaridade, de emprego, de saneamento, de segurança, ela tem fracassado. Podia ter sido diferente? Sem dúvida. Pode ainda corrigir seu rumo e construir um país viável? É duvidoso.
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