Há muito o que tirar dos depoimentos tornados públicos nesta sexta-feira, 15, pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, na investigação que apura a articulação de um golpe de Estado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e alguns aliados. Entre elas: a indicação de que não teria se tratado de mera cogitação, mas de efetiva tentativa de subverter a ordem democrática; a pouca ausência de contradições nas falas; e uma razoável indicação dos núcleos que buscavam a ruptura a qualquer custo e os que resistiram e a impediram na prática.
Nos relatos apresentados pelos ex-comandantes do Exército e da FAB, Freire Gomes e Baptista Júnior, respectivamente, há uma linha comum que reforça que não houve apenas momento em que Bolsonaro meramente cogitou implementar uma medida antidemocrática, mas a insistência, a obsessão e diversas tentativas de cooptação de aliados e das Forças Armadas para um golpe de Estado. Os dois narram uma série de situações em que o ex-presidente tentou de fato implementar a ruptura. Tentando, segundo eles, fazê-los concordar com estado de sítio, GLO e estado de defesa e pressionando pela mudança do resultado mesmo sabendo, segundo eles, que não havia nenhum indicativo de fraude na disputa que elegeu Luiz Inácio Lula da Silva.
Em seus depoimentos, dados na condição de testemunhas, sem que, em tese, houvesse motivos para que inventassem qualquer coisa, eles também apontam aqueles que seriam os parceiros do golpe. Anderson Torres, Filipe Martins, Paulo Sergio Nogueira, Carla Zambelli e uma miríade de figuras subalternas das Forças Armadas… Nomes que em diversos momentos são citados como aliados do presidente na tentativa de convencer o topo do poder militar a embarcar na aventura golpista em reuniões ou até encontros fortuitos. Em especial, Almir Garnier, o almirante que comandava a Marinha e que, segundo eles, teria aceitado ceder tropas para a ruptura.
Esses personagens apontados por Freire Gomes e Baptista Júnior reagem ou negando conhecimento sobre a trama golpista ou se calando nos depoimentos. Ninguém, porém, apresentou qualquer versão que desmontasse a narrativa apresentada pelos dois ex-comandantes.
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Também Valdemar Costa Neto, por mais que tenha se desvencilhado das discussões sobre minutas e investida junto aos militares, reconhece a pressão que Bolsonaro fazia para que o PL descredibilizasse o resultado das eleições. Nesse ponto, é bom ressaltar que em nenhum depoimento há qualquer indicativo de que qualquer dos investigados acreditasse em fraude nas urnas. A maioria disse não concordar com a tese e quem não o fez, apenas afirmou que preferia não opinar.
Enquanto testemunhas como Freire Gomes e Baptista Júnior contaram detalhes da tentativa de golpe, investigados no máximo argumentaram desconhecimento ou disseram não ter posição suficientemente relevante para levar adiante a proposta. Não houve quem defendesse que o presidente jamais faria isso, mas apenas respostas como “não participei”, “não fiquei sabendo”, “não fui nessa reunião”. E os silêncios, claro, com o de figuras como o próprio ex-presidente, de Braga Netto, de Augusto Heleno e de Marcelo Câmara, que optaram por exercer um direito que a lei lhes assiste. Nenhum desses veio a público ainda se manifestar sobre o teor das oitivas.
De outro lado, a PF reuniu uma série de indícios que vão se somando na construção da história por trás do quase golpe de Estado que o Brasil sofreu. As diversas reuniões realizadas para tratar do tema, recados explícitos em um encontro ministerial gravado, a reunião com os embaixadores para detonar as urnas, a armação de uma live com um argentino para reforçar as teorias da conspiração e a certeza de que a solução para impedir Lula de tomar posse estaria em uma GLO, um estado de defesa ou estado de sítio, medidas previstas na Constituição mas que nunca poderiam ser usadas com esse objetivo.
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Enquanto nos bastidores a trama acontecia longe das vistas da população, externalidades dessa tentativa puderam ser acompanhadas naquele mesmo período. A falta de reconhecimento do resultado pelo presidente, um discurso enviesado no Alvorada, os acampamentos financiados que não eram desmontados nos quartéis, a invasão da sede da PF e os ataques de terror com carros e ônibus incendiados em Brasília no dia 12 de dezembro, a bomba no acesso ao aeroporto da capital no dia 24 de dezembro e, por fim, os ataques às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro.
Argumentar, juridicamente, que tudo isso não passava de mera cogitação é tarefa das mais difíceis. Resta apenas o discurso político que muitos aliados fazem por gratidão ou por votos bolsonaristas, mesmo sabendo que o futuro do líder de seu campo parece cada vez mais indicar pela condenação e a prisão. Um presidente que no longínquo 1999 disse que ao tomar posse “daria golpe no mesmo dia”, parece ter tentado subverter a ordem até o último dia de seu mandato, ou uma semana depois de deixar o poder. Foi quando, dos Estados Unidos, viu que o fracasso do 8 de janeiro destruiu a última esperança de virar a mesa.
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