PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Traduzindo a política

Opinião|É cedo para dizer quem vencerá em SP, mas já se conhece a grande derrotada: a Justiça Eleitoral

Punições brandas, demora na decisão e condescendência com reiterações, sobretudo por parte de Marçal, indicam que driblar a lei tem valido à pena

PUBLICIDADE

Foto do author Ricardo Corrêa
Atualização:

Faltando pouco mais de um mês para a ida às urnas, com um empate técnico entre três candidatos que disputam duas vagas no segundo turno e com um histórico que indica viradas de última hora na capital paulista, é cedo para apontar um favorito hoje para ganhar a Prefeitura de São Paulo. A derrotada, contudo, já sabemos qual é: a Justiça Eleitoral, que mostrou não estar dotada de mecanismos e agilidade suficiente para lidar com uma campanha construída fora da lei ou jogando com o regulamento embaixo do braço.

PUBLICIDADE

Os exemplos são inúmeros, sobretudo vindos da candidatura de Pablo Marçal, ex-coach que dobrou a direita mesmo sem a autorização de Bolsonaro, cresceu nas pesquisas e entrou na briga pela vaga no segundo turno com uma tática de guerrilha.

A Justiça Eleitoral até tentou agir contra ele, tirando do ar seu perfil original no Instagram por conta da suspeita de uso de um “campeonato de cortes” para remunerar terceiros que divulgavam seus vídeos. O próprio candidato admitiu a prática em vídeo, embora hoje negue que isso tenha sido feito nos períodos de pré-campanha e campanha. Ocorre que a demora para tomar a decisão e o prazo dado para que ele criasse outro perfil permitiu que ele usasse o espaço que lhe seria retirado para impulsionar sua nova rede, cujo crescimento repentino também gera suspeitas.

Marçal, Nunes, Boulos, Tabata, Datena e Marina Helena Foto: Felipe Rau e Werther Santana/Estadão

Não parou por aí. Em debates e entrevistas, Pablo Marçal espalhou, sem provas, que o adversário Guilherme Boulos era usuário de cocaína. A Justiça Eleitoral até considerou o conteúdo falso, determinou a veiculação de um direito de resposta. Demorou, contudo, a tomar a decisão. O assunto já tinha ganhado as redes e o nome de Boulos já estava marcado com a acusação. Quando o direito de resposta finalmente foi concedido, depois de ser derrubado liminarmente, Marçal já nem mais possuía as redes em que fez a acusação. Publicou o direito de resposta na conta reserva, mas colocando um fundo preto para mascará-lo em meio às publicações, incluiu um comentário jocoso cobrando o exame toxicológico do candidato, reforçando a acusação apontada como falsa, e ainda publicou uma série de postagens na sequência para empurrar para longe dos olhos de seu eleitor a versão do adversário autorizada pela Justiça.

Em lojas da 25 de março, produtos com o M de Marçal são vendidos livremente. Em seu site de campanha, como mostrou o Estadão, são comercializados cursos de networking, o que a lei não permite. Na pré-campanha, usou recursos de suas empresas, o que especialistas apontam não estar dentro da legislação. Em debates e sabatinas, xinga e ofende seus adversários indiscriminadamente e sem qualquer punição efetiva. Apenas multas irrisórias. O homem que tem patrimônio multimilionário, segundo o próprio declarou à Justiça Eleitoral, pagará R$ 10 mil por propaganda negativa contra o psolista.

Publicidade

Aliás, multas irrisórias também foram aplicadas a adversários que, igualmente, violaram a legislação. Boulos, que receberá só do PT R$ 30 milhões para sua campanha, terá que pagar módicos R$ 5 mil por fazer um jingle eleitoral e veiculá-lo no carnaval. Além disso, desembolsará R$ 10 mil por receber um pedido de voto explícito de Lula no ato de 1º de Maio dos trabalhadores, em período vedado pela legislação. Lula pagará só R$ 15 mil.

Tabata Amaral, por sua vez, escapou de punições por colocar o rosto de Ricardo Nunes em uma imagem do personagem Ken, da franquia Barbie, mesmo tendo a legislação taxativamente vetado o uso de “deep fakes” contra os adversários. Enquanto isso, Nunes impulsiona conteúdos negativos contra seus adversários, o que, em tese, a lei eleitoral também não permite.

Foram rejeitadas ações contra o prefeito por chamar Boulos de “vagabundo” e “sem vergonha” e contra o deputado, por chamar Nunes de “ladrão de merenda”. No debate da Gazeta, no domingo passado, as expressões “bandido condenado”, “ladrãozinho de creche”, “tchutchuca do PCC” e “invasor sem vergonha e sem caráter” fluíam sem qualquer medo de punição. É que vale absolutamente tudo, como há muito tempo não se vê.

É verdade que, ao longo de décadas, a Justiça Eleitoral se especializou, criou regras mais rígidas e tornou a eleição mais civilizada. Já foi pior. Em minha cidade, Juiz de Fora, um prefeito gostava de contar, aos risos, quando foi eleito, na década de 80, usando uma estratégia bizarra aos olhos de hoje na TV. Todos os dias, quando faltavam cinco segundos para acabar os 30 que tinha direito na propaganda eleitoral, dizia: “Hoje vou fazer uma denúncia contra o prefeito Fulano de Tal. O prefeito...”. Era cortado com o fim do tempo. No outro dia, voltava ao ar dizendo: “Ontem fui censurado ao tentar falar do prefeito”. Enrolava mais alguns minutos e repetia: “Mas hoje eu vou dizer. É que ele...” E era cortado de novo. Venceu a eleição. Acabou preso depois em pleno mandato por outro motivo.

Da década de 80 para cá, diversas travas foram criadas para tornar o eleitor menos suscetível a uma miríade de mutretas. O voto impresso e mais facilmente fraudado foi banido, houve um aperto maior à distribuição de brindes, ao transporte dos eleitores, regras mais rígidas para inibir o uso da máquina por parte do candidato à reeleição, mais transparência na divulgação de doações e gastos eleitorais e até a proibição de financiamento por parte de empresas. Houve a Lei da Ficha Limpa e o endurecimento das hipóteses de inelegibilidade. A proibição de montagens e trucagens em horário eleitoral e uma vigilância mais rígida nas pesquisas de intenção de voto. Muitos dribles nessas regras ainda acontecem, mas parecia que a cada eleição estaríamos mais perto de uma disputa justa.

Publicidade

A corrida eleitoral de São Paulo este ano mostra que isso depende menos da Justiça Eleitoral e mais dos candidatos que topam entrar na corrida eleitoral. As novas tecnologias, a velocidade de difusão da informação nas redes, as novas técnicas de espalhamento, somadas à lentidão na tomada de decisões e ao receio de parecer duro demais com um candidato populista, em tempos de polarização e ataques à Justiça, geraram um retrocesso. A eleição de 2024 na maior cidade do País não é aquela da década de 1980 no interior. Mas traz a impressão de que descumprir reiteradamente a regra vale à pena. Pelo menos, por enquanto.

Opinião por Ricardo Corrêa

Coordenador de política em São Paulo no Estadão e comentarista na rádio Eldorado. Escreve às quintas

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.