Após quase um mês de reclusão médica ou de retomada das atividades, mas com poucas declarações públicas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou aos microfones para falar com jornalistas e distribuiu polêmicas que vão gerar problemas para seu governo ou rechear os discursos de oposição nas mais diversas áreas. Não faltaram falas para ampliar questionamentos na economia, na política ou no cenário internacional, o que reforça a tese de que muitas vezes é o próprio presidente quem dá munição para os bombardeios a seu governo. Cabe a seus ministros agora lidar com eles.
Fernando Haddad, por exemplo, é um dos que terá trabalho nos próximos dias, após o presidente dizer o que o mercado já suspeitava, mas cujas fantasias se desfazem após uma fala bem direta. A de que o governo dificilmente vai cumprir a regra com a qual ele próprio se comprometeu nas negociações no Congresso e em troca de confiança do mercado: o déficit zero em 2024. Lula disse, de certa forma até contraditoriamente, que fará o possível para isso, mas que não vai sacrificar investimentos (ou gastos) para garantir que o governo feche no azul ou dentro da margem de tolerância. Isso, naturalmente, tem a capacidade de arranhar a credibilidade da política econômica - basta olhar a reação do mercado instantaneamente à fala - ou mesmo servirá para questionamento quando o governo quiser se comprometer com mais alguma coisa no Congresso.
O próprio relator da LDO, Danilo Forte, resumiu o cenário deixado pela declaração do presidente. Nas redes, afirmou que as falas causam “constrangimento” a Haddad. “Trata-se de uma fala brochante para a pauta econômica, que sofre resistências no Legislativo”. Trocando em miúdos: tudo vai custar mais caro para o governo agora.
Também no cenário internacional a fala sobre querer conversar com quem for amigo do Hamas ajuda mais os críticos do que a si próprio. Embora seja nobre a defesa de que todo esforço é válido para a libertação de reféns sequestrados pelo grupo, a declaração é cercada de problemas. Entre outras coisas, iguala condutas do grupo terrorista Hamas e de Israel ao dizer que ligaria para um país amigo do Hamas para liberar reféns e para o governo de Israel liberar os presos. Presos e reféns não são iguais, obviamente.
Além disso, sugerir que seria simples ligar para um país “amigo do Hamas” para argumentar que deveriam liberar reféns para não ficar com “inocente lá metido” parece desconsiderar que os inocentes foram as principais vítimas do grupo nos atentados do dia 7. Está na essência de um grupo terrorista como o Hamas atacar alvos não militares. Independentemente dos brutais excessos de Israel na Faixa de Gaza, que parecem claros, é preciso traçar essa diferença.
Lula também escorregou em uma declaração sobre a demissão em série de mulheres em seu governo para acomodar interesses de partidos de centro em troca de votos no Congresso. Não por admitir abertamente o toma-lá-dá-cá, pois isso parece ter sido normalizado no Brasil. Mas por afirmar que “se o partido não tem mulher, não posso fazer nada”. Certamente, tirando mulheres de postos-chave para acomodar outros interesses, seria melhor não fazer nada pela causa feminina, pois isso só desestimula que elas continuem cada vez mais mergulhando no mundo partidário. E, sim, os partidos possuem mulheres. Dados de setembro do TSE apontam, por exemplo, que as mulheres eram maioria (51%) entre os filiados do Republicanos, por exemplo, um dos partidos que ganhou espaço recente no governo. Mesmo o PP, que herdou a vaga de Rita Serrano na Caixa e, antes, a de Ana Moser no Esporte, tem 49% de mulheres entre os filiados. O que eles possuem são poucas mulheres em cargos de comando. Geralmente elas são preteridas, como têm sido nas trocas do governo.
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Esforço mesmo fez Lula para tentar não melindrar as Forças Armadas. Deixou claro o temor que tem de uma Garantia de Lei e de Ordem, ao afirmar que no seu governo quem governa é ele. Mas enfatizou que não quer militar trocando tiros na favela, como nenhum membros das Forças Armadas quer, e enfatizou que busca recuperar a instituição, atribuindo apenas a Bolsonaro a culpa pela excessiva vinculação entre militares e o governo nos últimos quatro anos.
Por fim, o café de Lula com os jornalistas também serviu para um ajuste no discurso de um governo que enxergou que precisa de um pouco mais do que o apoio dos mais pobres para governar. A velha frase de que é preciso colocar o pobre no orçamento foi alterada. Na versão atual, Lula diz que quer tirar da cabeça das pessoas que esse governo só pensa em pobre. Mas que objetiva transformar o Brasil em um país de classe média. Entregar esse objetivo, porém, parece cada vez mais desafiador.
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