A vacina contra o coronavírus não será obrigatória e ponto final, decretou o presidente Jair Bolsonaro. Resta-nos a esperança de que este ponto final de agora, como o foram tantos outros, seja um mero arrebatamento da ignorância. Não voltaremos à idade da pedra, mesmo que seja necessário recorrer ao papa, ao pajé ou ao Tribunal de Haia.
Ponto final quer dizer fim. Não permite réplica. A não ser que se subverta o sinal gráfico convencionado.
O ponto final, no discurso de Bolsonaro, pode significar vírgula; talvez, ponto e vírgula; com certeza reticências; muitas vezes exclamação ou até parênteses. Quem sabe, pausa para um gole d’água; também uma intervenção abusiva, subentendida a determinação para que se mude de assunto.
Correndo o risco de glamourizar um evidente vício verbal, o histrionismo de Bolsonaro, ao banalizar a conclusão do seu pensamento com a expressão superlativa, virou marca. Todo mundo aceita, ninguém discute.
Bolsonaro é espectador do seu próprio governo. Não demonstra convicção, compromisso ou segurança nas decisões. Fala uma coisa agora e seu contrário minutos depois. Subversão total do ponto final.
Exemplo: não se fala em Renda Brasil até o fim do meu governo e ponto final. Foi o que disse antes de receber o relator e autorizar o prosseguimento do projeto relativo ao programa renegado. Talvez, no caso, coubesse só uma vírgula, abrindo caminho a um advérbio de tempo. Não se fala mais nisso, agora.
Quando o assunto foi retomado com renovado vigor, a condenada Renda Brasil tornou-se Renda Cidadã, e todos já tinham esquecido a peremptória ordem anterior.
O presidente admitiu, gerando abalos ao mercado de ações, que o governo estuda mesmo, apesar dos desmentidos, a hipótese de furar o teto de gastos e ponto final. Esta não esperou o dia amanhecer e o próprio Bolsonaro tratou de buscar outros recursos da ortografia, detendo-se na exclamação e no travessão. O caminho está livre a qualquer estudo, quis dizer Bolsonaro, antes de exclamar: meu governo jamais transgredirá com o rigor da política fiscal!
O tema do aumento da carga tributária e criação do novo imposto sumiu numa gaveta temporária de hipóteses lesa-voto, a serem examinadas depois das eleições de 2020. Não se sabe como reaparecerá no discurso de Bolsonaro que, inúmeras vezes, garantiu que no seu governo não tem volta da CPMF e ponto final. Como esta é uma obsessão do ministro da Economia, o presidente teve de mudar a pontuação ou demiti-lo.
Agora, com reticências, o novo imposto transformou-se em uma condicionante para desoneração da folha, depois para financiar a renda mínima, em seguida voltou a instrumento de combate ao desemprego, até ser recolhido a um dos escaninhos que abrigam os estelionatos eleitorais premeditados.
Em abril, registrou-se o que se imaginou ser o ponto final dos pontos finais. Na reunião ministerial em que reclamou da ineficiência do serviço de informação da Presidência, fez revelações bombásticas. Disse que possuía informantes particulares e se queixou da falta de ascendência sobre a Polícia Federal. Bolsonaro foi taxativo: “Vou interferir e ponto final”.
Quando a interferência virou inquérito no Supremo Tribunal Federal, por denúncia do ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro, o sinal gráfico passou a ser um parênteses de negação do fato em todas as suas versões.
O ponto final da vacina é especial, trágico. Com uma carga pesada de dramaticidade e letalidade. Assusta os escalões inferiores, insufla decisões pessoais precipitadas, causa pânico nacional e horror internacional. É grave, desafia a Ciência, que não é um partido ou paixão acidental.
O governo assume riscos de crime contra a humanidade. Ponto final coisa nenhuma.
*COLUNISTA DO ‘ESTADÃO’ E ANALISTA DE ASSUNTOS POLÍTICOS
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