O balanço dos vexames de Jair Bolsonaro na 76.ª Assembleia-Geral da ONU mostrou como um governante pode estragar uma conquista da diplomacia do seu país. O presidente levou o Brasil a perder uma grande oportunidade de se fazer ouvir. Seu negacionismo agressivo com relação à pandemia, as insistentes falsidades, as referências reacionárias à família, além dos desvios de comportamento, superaram as expectativas.
O contragosto começou na véspera, quando Bolsonaro teve de ouvir o discurso de más-vindas do prefeito de Nova York. A partir dali, enfrentou uma sucessão de reações que o obrigaram a zanzar de um lado para o outro fazendo-se de desentendido. A comitiva do governo brasileiro, sem agenda, seguiu o mestre, promovendo cenas inacreditáveis de degradação.
Almoçar uma pizza na calçada porque, ao descumprir regras sanitárias de Nova York, está proibido de entrar em restaurantes, não é uma cena natural para um presidente da República. Bolsonaro contamina o cargo com sua incivilidade e péssima educação.
O ministro Marcelo Queiroga, autor do gesto obsceno surpreendente da promenade em NY, fundiu-se à laia presidencial e confirmou o seu papel de fingidor laureado. Festejou, neste passeio, o caos que promove na política de imunização do País. Queiroga conseguiu, ali, a foto oficial de sua própria campanha eleitoral na Paraíba. Até o discreto chanceler, Carlos França, resolveu introduzir, na linguagem diplomática brasileira, a marca da família Bolsonaro: nos dedos polegar e indicador em riste, o desenho da arma que ameaça os passantes.
Que estes acontecimentos fiquem para a agenda de um psicanalista junguiano especializado em países humilhados ofendidos por seus governantes. A ver se grosseria tem cura.
A data de ontem, reservada à audiência mundial do pensamento brasileiro, foi desperdiçada. Bolsonaro proferiu o discurso de sempre, sem alma, sem ideias, recheado de mistificações. Apresentou-se, mais uma vez, como o garoto-propaganda da cloroquina, na desqualificada forma da defesa do tratamento precoce da covid-19. No item Meio Ambiente, de interesse extremo para todas as nações, pinçou dados que disfarçam sua sanha destruidora e a incompetência do governo.
Ocultando referências à carta de rendição em que desmentiu a si mesmo do que disse no palanque do 7 de Setembro, contou aos estrangeiros uma lorota sobre as multidões que levou às ruas. Nem foi a maior manifestação popular do Brasil nem aqueles seus eleitores estavam clamando por liberdade. O bolsonarismo chama de liberdade a imposição da mentira e o ataque à democracia. O desemprego e a inflação crescentes foram cinicamente manipulados como exemplos de sucesso da política econômica.
Bolsonaro não honrou sequer as citações que costuma fazer dos governos militares, imaginando-se um deles. No caso, nem sequer conhece a política externa criativa praticada pelos generais-presidentes da ditadura militar.
Do governo Ernesto Geisel, a história registra uma política externa consistente, comandada pelo chanceler Azeredo da Silveira, em cujo desfecho há resultados concretos, como o reconhecimento da China, Angola e Moçambique, além do acordo nuclear com a Alemanha.
Já do general João Figueiredo, ficou o registro de um discurso de estadista, de conteúdo doutrinário, filosófico e político. É verdade que todo orientado pelo chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro, que, como o antecessor Silveirinha, integrava a elite da diplomacia brasileira respeitada mundialmente. Mas o general teve o bom senso de se curvar à sabedoria dos formuladores da política externa.
Se não sabia, o mundo percebeu, nesta terça-feira, que o Brasil é um país encurralado por seu presidente e este, um ser isolado do planeta. Como definiu o pré-candidato a presidente da República Aldo Rebelo, ele desempenha “o papel do malandro em delegacia de polícia”.
Bolsonaro está tentando explicar o inexplicável.
COLUNISTA DO ‘ESTADÃO’ E ANALISTA DE ASSUNTOS POLÍTICOS
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