Desembargador mandou pagar royalties por critério que cidade de pai de Lira não cumpre

Barra de São Miguel, em Alagoas, arrecadou R$ 14,5 milhões sem produzir petróleo após prefeito Biu de Lira contratar advogado que se encontrou o filho em Brasília

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Atualização:

Para Barra de São Miguel (AL) ter direito a uma fatia milionária de royalties de petróleo e gás, o advogado Gustavo Freitas Macedo alegou à Justiça do Distrito Federal que o município era “confrontante” com cidades produtoras de petróleo em terra, ou seja, vizinho a São Miguel dos Campos, Marechal Deodoro e Roteiro. A vizinhança bastaria, na alegação do advogado, para um repasse anual 6.000% maior ao já transferido à cidade por ela estar na “zona de produção” de Alagoas. O critério de “confrontante” com vizinho produtor para pagamentos maiores de royalties não existe na legislação brasileira.

O prefeito da cidade é Benedito de Lira (PP-AL), conhecido como Biu de Lira, pai do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Gustavo Freitas Macedo integra o grupo do lobista Rubens de Oliveira, que esteve no gabinete de Lira em Brasília dois meses antes de os recursos que estavam bloqueados começarem a ser liberados. Com a decisão, a cidade que recebia R$ 237 mil de royalties por estar na zona de produção de petróleo passou a ganhar R$ 14,5 milhões mesmo sem produzir nada de petróleo.

Biu Lira, pai do presidente da Cãmara, Arhur Lira, é prefeito de Barra de São Miguel, em Alagoas Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

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Em 24 de novembro de 2021, o lobista entrou na Câmara às 11h53 informando que iria à presidência da Casa para um encontro com o deputado, conforme registros oficiais do Congresso. Àquela época, o município alagoano tinha uma decisão favorável do TRF-1, mas ainda não havia recebido os pagamentos.

Rubens de Oliveira atua convencendo prefeitos a contratar escritórios individuais de advocacia controlados por ele para reivindicar, na Justiça Federal de Brasília, o direito a altas parcelas de compensação financeira com royalties de petróleo. Em troca, o grupo ganha 20% de tudo o que as cidades arrecadam a partir das decisões judiciais, ainda que as sentenças sejam derrubadas depois.

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Procurado, Oliveira diz ter conversado com Arthur Lira, na Câmara, sobre “consórcios que os municípios criam para poderem atuar no mercado de uma forma mais justa”. Ele afirma que é representante de prefeituras alagoanas que se juntam para participar de licitações, “digamos assim, para construção civil, para medicamentos, coisas nesse sentido”. E nega trabalhar no mercado de royalties e petróleo, contrariando o que ele mesmo divulga nas redes sociais. Lira pediu mais prazo para responder à reportagem, mas depois preferiu não se manifestar oficialmente.

O critério de “confrontante” com vizinho produtor para pagamentos maiores de royalties, argumento usado pelo advogado Gustavo Freitas Macedo do grupo de Rubens de Oliveira, não existe na legislação brasileira. A condição, contudo, foi aceita pelo desembargador Carlos Augusto Pires Brandão, após recurso ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), mesmo sob duros protestos da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).

O órgão alegava que os argumentos do advogado Gustavo Freitas Macedo, contratado sem licitação pelo prefeito Biu de Lira, “carecem de suporte fático, técnico ou legal”, pois “manipulam e distorcem” o que está previsto em lei para apresentar “inverdades” à Justiça.

A legislação do petróleo prevê repasses para cidades não produtoras localizadas em áreas de produção, mas não dá condições especiais para cidades “confrontantes” com municípios produtores. O termo explorado pelo advogado só é utilizado no setor para casos bem específicos, de produção marítima, conforme estipulado nas leis 7.525/1986 e 7.990/1989 e no decreto 1/1991.

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Só têm condições especiais os “municípios confrontantes com poços marítimos” e os “confrontantes com áreas de campos produtores marítimos”. Não é o caso de Barra de São Miguel. Em nota ao Estadão, a ANP avaliou que “o Judiciário foi levado ao erro”.

Antes de recorrer ao TRF-1, Gustavo Macedo havia perdido na 1ª instância. O juiz Frederico Botelho de Barros Viana, da 4ª Vara Federal Cível do DF, negou o pedido de liminar, em 27 de agosto de 2021, por avaliar que os fatos narrados necessitavam de “maior esclarecimento”. O recurso ao tribunal foi apresentado em 8 de setembro de 2021. O desembargador Carlos Augusto Pires Brandão decidiu favoravelmente sete dias depois.

“Defiro o pedido de antecipação dos efeitos da tutela recursal formulada para determinar que a agravada (ANP) inclua o município de Barra de São Miguel no rol de beneficiários dos royalties na condição de confrontante. Deverá a Agência Nacional do Petróleo proceder aos cálculos”, diz a decisão.

A inclusão, porém, levou quase quatro meses para ser cumprida. A agência informou duas vezes a Pires Brandão que não poderia alterar as parcelas com base no critério criado pelo advogado, uma vez que o parâmetro “confrontante com município produtor” não existe na lei. Portanto, não seria possível calcular as novas alíquotas e percentuais.

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Em 31 de janeiro de 2022, Pires Brandão deu a palavra final. Ele determinou que, em 72 horas, a ANP incluísse Barra de São Miguel no “no rol de beneficiários dos royalties na condição de confrontante, utilizando-se os mesmos parâmetros da condição de detentor de instalações marítimas e/ou terrestres de embarque e desembarque de petróleo e gás natural”. Barra de São Miguel não tem essas estruturas em seu território.

Antes da ordem judicial, o município recebia um valor baixo com royalties, pois atendia apenas a um critério previsto em lei para municípios não produtores. Entre 2018 e 2021, a cidade obtinha, no máximo, R$ 237 mil por ano. Com a decisão, a cidade foi enquadrada em outro parâmetro da divisão e aumentou seus ganhos. De 2022 a junho deste ano, já arrecadou R$ 14,5 milhões com royalties.

Em um documento interno, obtido pelo Estadão, a ANP registrou que a cidade de Lira receberia royalties “em completa deturpação da vontade do legislador”.

“Alertamos à PRG (Procuradoria-Geral da agência) para a excepcional gravidade desta decisão judicial, que pode se transformar num divisor de águas potencialmente catastrófico para a distribuição da parcela dos royalties destinada aos municípios detentores de instalações de embarque e desembarque de petróleo e gás natural”, destacou.

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Em fevereiro de 2022, Barra de São Miguel começou a receber a “bolada”. Naquele mês, o município de Lira recebeu uma parcela de R$ 3,9 milhões em valores retroativos. O repasse de valores impactou outras cidades, uma vez que os pagamentos aos beneficiários dos royalties são divididos a partir de um mesmo fundo. Cada vez que um município entra no rateio, os outros passam a receber menos do que poderiam. Para Barra de São Miguel ganhar, outras 270 cidades, como Macaé e Campos dos Goytacazes (RJ), perderam.

Em junho deste ano, o Tesouro Nacional distribuiu mais de R$ 4,1 bilhões em royalties a Estados e municípios. Barra de São Miguel faturou R$ 663 mil naquele mês. O valor é próximo àquele pago à cidade de São Miguel dos Campos, um dos maiores produtores de Alagoas, que obteve R$ 989 mil no mesmo período.

A legislação brasileira determina que a União, os Estados e os municípios beneficiários dos royalties invistam os valores em energia, pavimentação, água, irrigação, meio ambiente, saneamento, educação e saúde. Barra de São Miguel usou R$ 3,9 milhões para honorários advocatícios a um dos advogados ligados ao lobista, entre pagamentos e reserva de caixa.

Sede de escritório fica na fronteira com a Argentina

Gustavo Freitas Macedo é o único advogado de um escritório próprio localizado em Três de Maio (RS), na fronteira com a Argentina. O contrato fechado por Biu de Lira, em agosto de 2021, prevê que o advogado receba 20% de todos os royalties obtidos pela prefeitura com a decisão judicial.

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O escritório do advogado foi registrado em fevereiro de 2021 junto a Receita Federal – seis meses antes da assinatura do contrato com Barra de São Miguel. Macedo informou ao Fisco que sua banca tem um capital social de R$ 1 mil. O acordo entre o município e o advogado foi firmado sem licitação. A prefeitura afastou a necessidade de abrir concorrência entre escritórios de advocacia por causa da “notória especialização” de Gustavo Macedo. Procurado pelo Estadão, ele não quis dar declarações.

Antes de começar a apresentar ações que reivindicam repasses de royalties para prefeituras, Macedo atuava como criminalista na ação penal a que Rubens Machado de Oliveira responde na Justiça Federal do Rio Grande do Sul. O lobista, condenado por estelionato, é o articulador do mercado de incremento artificial de receitas de royalties por prefeituras, como revelou o Estadão.

O TRF-1 informou que “não haverá manifestação por parte dos magistrados citados”. A Advocacia-Geral da União (AGU), que representa a ANP na Justiça, se manifestou sobre as informações levantadas pela reportagem. Em nota, o órgão afirmou que se tratam de “decisões proferidas sem rigor técnico” que estabelecem “critérios criados judicialmente”.

“Quando um município que legalmente não tem direito a royalties passa a recebê-los, isso gera um efeito cascata bastante deletério, pois reduz o montante a ser repassado àqueles que legalmente têm direito a receber”, destacou a nota.

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