BRASÍLIA – Na sexta-feira, 2, o ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, disse em um discurso inflamado na inauguração de um hospital em Itaberaba, no interior baiano, que Brasília é uma “ilha da fantasia” e que os políticos, nos percursos que fazem até chegar à Praça dos Três Poderes, não lidam com “gente pedindo comida e gente desempregada”. “Vocês podem ter certeza. Brasília não vai me mudar, e eu vou lutar com todas as minhas forças para mudar Brasília, e mudar aquele jeito de encarar o que é coisa pública”, afirmou.
Ao longo do percurso que o ministro costuma fazer na capital federal diariamente em carro de vidros blindados e fechados, porém, a realidade é diferente. As margens da N2, uma via a menos de um quilômetro do Palácio do Planalto, onde Costa despacha, são ocupadas por barracas feitas com sacos de lixo e placas pedindo por alimentos e cobertores. Perto dali, na Rodoviária do Plano Piloto, a dois quilômetros do gabinete dele, dezenas de pessoas dormem embaixo dos viadutos.
Final de tarde na avenida L3 Norte. A seis quilômetros do Planalto, Maria das Dores, de 54 anos, prepara o seu jantar com um pequeno amontoado de carvão que guarda em sua barraca improvisada, na calçada, onde vive com a filha. Vagando de um lugar para o outro, ela costuma recriar o seu lar até que os agentes a serviço do Governo do Distrito Federal a obriguem a procurar outro rumo. A ocupação onde Maria das Dores vive é dividida com outras pessoas em situação de rua e fica em um trajeto usual entre os Três Poderes e a Granja do Torto, uma das residências oficiais da Presidência.
Veja vídeo especial com depoimento dos entrevistados
Quem prometeu (a residência) foi o Lula, nós ‘votemos’ para ele esperando uma casinha e até hoje
Maria das Dores, moradora em situação de rua no DF
A sua chegada à ocupação foi recente. Ela conta que na quinta-feira, 1º, um dia antes da polêmica fala do ministro da Casa Civil, servidores do GDF a despejaram de outra calçada onde vivia, levando suas roupas, cobertores e lonas. Mostrando o seu barraco improvisado de cobertores, papelão e lona, ela não esconde seu desalento ao falar da espera por um apartamento subsidiado pelo governo, além de uma cirurgia no olho que pode evitar a cegueira.
“Quem prometeu (a residência) foi o Lula, nós ‘votemos’ para ele esperando uma casinha e até hoje. Já para os outros, já saiu, mas para a gente ainda não”, disse. “Me cobraram R$ 10 mil (pela cirurgia), como é que eu vou tirar R$ 10 mil para pagar uma operação no meu olho? Então, vou ter que pedir ajuda para um ou para outro até conseguir”, disse Maria das Dores.
A poucos metros do barraco de Maria das Dores, vive Erisvaldo Santana, nascido há 30 anos na cidade baiana de Irecê. Ele diz que passou a residir nas ruas após ter sido roubado, sobrevivendo com sua mulher da coleta de materiais recicláveis e ajuda dos motoristas que trafegam pela avenida.
Enquanto Erisvaldo conversava com o Estadão, um carro branco estacionou no meio-fio da pista e entregou uma caixa de garrafas PET para o casal. A ajuda veio de Tamy Lacerda, de 58 anos, uma profissional de saúde aposentada que regularmente faz trabalhos solidários nas ocupações da L3 Norte. Para ela, a fala do ministro da Casa Civil sobre Brasília mostra uma “ignorância de quem não conhece o seu povo”.
As pessoas que são ignorantes, no sentido de ignorar a realidade e não querer conhecê-la, a gente que conhece um pouco poderia, sim, apresentá-los à realidade da sociedade do DF
Tamy Lacerda, profissional de saúde aposentada e voluntária em Brasília
Tamy afirma que Costa deveria acompanhá-la em seu trabalho voluntário nas ocupações da capital federal. “As pessoas que são ignorantes, no sentido de ignorar a realidade e não querer conhecê-la, a gente que conhece um pouco poderia, sim, apresentá-los à realidade da sociedade do DF.”
Desigualdade
Os problemas e as desigualdades sociais de Brasília continuam fora do centro administrativo da capital. Dos 3 milhões de moradores do DF, apenas 225 mil vivem no Plano Piloto, região administrativa onde ficam as sedes dos Poderes, segundo o Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPEDF). A grande maioria da população reside nas chamadas periferias urbanas, que apresentam características que muito se distanciam da qualidade de vida das residências em volta do centro do poder.
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Uma das regiões que mais demonstram a desigualdade na capital federal é a do Setor Santa Luzia, no bairro da Cidade Estrutural, que fica a menos de 15 quilômetros do gabinete de Costa e sofre com problemas de saneamento básico, iluminação e assistência social.
A comunidade surgiu após a criação do Lixão da Estrutural, desativado em 2018 e que já foi o maior depósito de dejetos a céu aberto da América Latina. Fonte de renda para a população, o fim do lixão deixou a população local, vulnerável, em situação de sobrevivência ainda mais crítica. Uma pesquisa do GDF de 2021 mostrou que a renda média de um morador do Setor Santa Luzia é de R$ 1.261 – o salário do ministro da Casa Civil, após reajuste em abril deste ano, é 32 vezes maior: R$ 40.651.
O contexto da comunidade ficou ainda mais grave durante a pandemia de covid-19. Nesse período, a moradora Maria da Guerra, de 43 anos, decidiu criar um centro de apoio para as mães da região que necessitavam de alimentos básicos para os seus filhos. “Elas começaram a bater aqui na porta pedindo arroz e açúcar”, relembrou.
No ponto mais alto da comunidade, é possível avistar os grandes prédios do centro de Brasília. Maria da Guerra, porém, diz que os olhares dos políticos não chegam até as ruas da região, castigadas pela terra vermelha e pela falta de coleta de lixo. “Eles não sabem onde é a Santa Luzia. Só vivem nos palacetes, então eles acham que é só o luxo”, observou a moradora.
Eles não sabem onde é a Santa Luzia. Só vivem nos palacetes, então eles acham que é só o luxo
Maria da Guerra, ativista em centro de apoio no Setor Santa Luzia
Segundo a ativista, o novo governo federal e o governo distrital ainda não chegaram à região, apesar de seus mandatários estarem próximos das suas casas. Ela observa que cumpre um dever que deveria ser realizado pelo poder público. “A gente vive a realidade da vida, principalmente a do sofrimento, da fome, do descaso”, afirmou. “A gente não tem saneamento básico, vive em condições precárias e com mães vivendo em barracos de madeirite.”
Pioneiro
Outro trecho do discurso de Rui Costa que irritou brasilienses foi quando o ministro questionou a mudança da capital federal para o Cerrado nos anos 1960. “Aquele negócio de botar a capital do Brasil longe da vida das pessoas, na minha opinião, fez muito mal ao Brasil”, afirmou o ministro na Bahia – Estado que já governou por duas vezes.
Quando o mineiro Enildo Veríssimo, de 78 anos, chegou a Brasília, no tempo da construção da cidade, a capital federal era bem diferente das paisagens arquitetônicas de hoje em dia. Com apenas 15 anos, ele foi um dos “candangos”, trabalhadores que construíram os prédios públicos. Logo depois, fundou a Pizzaria Dom Bosco, a primeira na nova sede do poder.
Dono de uma das casas mais tradicionais da capital, ele viu Brasília se transformar de um “canteiro de obras empoeirado com barracas de madeira” para uma metrópole. À reportagem, o pioneiro disse que se entristeceu após ver o pronunciamento de Costa e que o ministro falou “de forma equivocada” por desconhecer “o esforço e o sofrimento” empenhados para erguer a cidade. “A gente ralando e o cara diz que aqui é uma ‘ilha da fantasia’? Se fosse uma ilha da fantasia, eu não estaria trabalhando até hoje”, afirmou.
Deputado distrital mais votado nas eleições de outubro, Chico Vigilante (PT-DF) chegou ao Distrito Federal na década de 1970. O petista classifica a fala do ministro como “infeliz” por reproduzir o “senso comum” das pessoas que moram fora de Brasília. Vigilante defendeu um pedido de desculpas formais. Ele também cobra uma visita de Costa às periferias da cidade e às produções agrícolas das zonas rurais. “Eu vou mostrar a Brasília que não é a Esplanada dos Ministérios.”
Na tarde de quarta-feira, 7, Rui Costa usou sua conta no Twitter para dizer que não foi “feliz” nas palavras em relação a Brasília e que tinha apenas feito um desabafo sobre o “processo de decisões”. “Quero deixar absolutamente claro que meu desabafo nada tem a ver com brasileiras e brasileiros que vivem na capital, com seus familiares, lutando, sonhando e passando dificuldades como tanta gente em todas as cidades do País”, disse, sem um pedido claro de desculpas.
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