O primeiro jogo da seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo do Catar ocorre nesta quinta-feira, 24, em meio à fratura política no País – mesmo após a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à Presidência. Especialistas ouvidos pelo Estadão apontam, porém, que um bom desempenho do time no torneio, o primeiro realizado após uma eleição presidencial, pode esfriar a polarização e criar uma nova reivindicação das cores da Bandeira Nacional por diferentes grupos.
Eles observam um resgate da relação da população com o futebol e com o verde e amarelo, hoje cores associadas ao presidente Jair Bolsonaro (PL). O movimento ocorre mesmo com o enfraquecimento da percepção do País como uma “Pátria de chuteiras” nos últimos 30 anos. Na prática, uma vitória pode beneficiar tanto Lula, que assume em janeiro, quanto Bolsonaro, que pode usar a oportunidade para reaparecer publicamente.

O petista chegou a publicar no Twitter que não tem vergonha de vestir a camisa com as cores da Bandeira. “A camiseta não é de partido político, é do povo brasileiro. Vocês vão me ver usando a camiseta amarela, só que a minha terá o número 13″, escreveu. Ele havia dito o mesmo durante pronunciamento em Brasília.
A camisa da seleção começou a ser usada por manifestantes antipetistas desde os protestos de rua em 2013, mas foi durante o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) que a “amarelinha” foi apropriada pelos opositores. Já na Copa de 2018, houve quem temesse vestir o uniforme e ser vinculado a um grupo político, e o movimento inflamou após apoiadores de Bolsonaro associarem a camisa a atos com mensagens antidemocráticas em que contestam o resultado da eleição deste ano e pedem intervenção.

Segundo o coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Sobre Futebol e Modalidades Lúdicas, que integra diversas universidades, o historiador Flávio de Campos, a relação entre política e futebol é explícita. “Há um distanciamento desta seleção como símbolo de unidade nacional, tanto pela vestimenta como por alguns atletas que têm essa expressão política. Há um constrangimento de torcedores não alinhados ao Bolsonaro, que não vão ligar para a Copa ou torcer para a Argentina”, disse. “Por outro, há os que defendem usar a camisa amarela para que não seja retirada a expressão legítima da cultura brasileira.”
É o caso de Ruan Nascimento, que sempre foi torcedor da seleção e se mobilizou para acompanhar os torneios mundiais desde 1994. Em 2018, ele passou a evitar vestir a “amarelinha” para não ser confundido com manifestantes adeptos de Bolsonaro, mas decidiu retomar o uso em 2022. “A camisa amarela foi usada por Pelé, Zico, Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho, Marta, Formiga, Cristiane, e tem um peso gigante”, disse.

Aversão
Contribuiu para o sentimento de aversão à camisa a uma parte dos torcedores o posicionamento de jogadores brasileiros como Neymar, que fez campanha para Bolsonaro nas redes sociais. Por isso, para o professor de Direito na Universidade LaSalle Fabrício Pontin, a tensão política se reproduz no campo. “Se o Neymar comemorar o primeiro gol com o 22 (número de urna de Bolsonaro), ele politiza sua atuação e cria um abismo entre a população que adere ou não adere ao bolsonarismo. Por outro lado, teria de acontecer algo muito drástico para o brasileiro não querer balançar a Bandeira e comemorar”, afirmou.
A camiseta não é de partido político, é do povo brasileiro. Vocês vão me ver usando a camiseta amarela, só que a minha terá o número 13
Luiz Inácio Lula da Silva, presidente eleito
O deputado estadual Luiz Fernando (PT-SP) disse que não há um movimento orquestrado do partido para o resgate das cores no torneio e que o êxito da seleção será positivo para “desarmar” o clima de divisão política. “A bandeira do PT sempre foi vermelha e a Bandeira do País sempre foi verde e amarela, nós nunca misturamos as duas. Tenho certeza de que todos os dirigentes (do PT) vão estar nesta Copa de verde e amarelo como sempre estiveram”, afirmou.
Já manifestantes pró-Bolsonaro passaram a sugerir que os presentes nos atos que são realizados na frente de quartéis troquem o verde e amarelo por camisetas brancas e camufladas, para não serem tachados de “torcedores da Copa”. Em uma publicação em aplicativo de troca de mensagens, uma usuária sugere que torcedores que forem ao Catar cantem o slogan “Forças Armadas, salvem o Brasil”.
Campanha
Na tentativa de contornar a polarização política, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e patrocinadoras oficiais da seleção lançaram campanhas com o objetivo de afastar o caráter político da camisa. “Todos podem se sentir bem com a camisa da seleção”, resumiu o presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues, após o vídeo da campanha ser exibido antes da convocação do técnico Tite. Em agosto, o treinador da seleção brasileira disse ao Estadão que a camisa “não pertence a partido político”.
A relação entre seleção brasileira e Nação começou a ser forjada em 1938, disse a pesquisadora do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Leda Costa. Já na Copa de 1950, houve uma fusão mais escancarada do futebol com o contexto político que culminou no torneio de 1970, quando a ditadura militar tentou se apropriar destes símbolos. Na época, vivia-se no Brasil duas realidades: a do chamado milagre brasileiro, com crescimento expressivo da economia e da taxa de emprego. E das torturas e mortes ocorridas nos porões da ditadura, então comandada por Emílio Garrastazu Médici.
Com a Copa, bate um só coração, todo mundo unido, torcendo pela seleção, pessoal vai esquecer essa política e vai todo mundo torcer para o Brasil. (Política) Vai ficar para janeiro
Givaldo Pereira da Silva, supervisor de montagem
“Essa recente apropriação política é mais um capítulo, que talvez tenha sido viabilizado por causa do enfraquecimento da relação entre seleção brasileira e Nação, que já estava com alguns laços fragilizados”, afirmou Costa. “Existe um movimento para essa retomada e a vitória de Lula pode viabilizá-la, sobretudo se a seleção brasileira for campeã, porque a vitória é sempre importante para se criar um clima festivo e se reconfigurar essa imagem da seleção.”
No Jardim Ubirajara, zona sul de São Paulo, o supervisor de montagem Givaldo Pereira da Silva organizou enfeites de toda uma rua. No chão, o brasão da CBF, bandeiras e jogadores colorem o pavimento. Já no alto, milhares de fitas nas cores nacionais foram penduradas para compor o cenário. Segundo ele, haverá churrasco para toda a quadra em dia de jogo da Copa, e está proibido trazer política à mesa. “Com a Copa, bate um só coração, todo mundo unido, torcendo pela seleção, pessoal vai esquecer essa política e vai todo mundo torcer para o Brasil. (Política) Vai ficar para janeiro”, afirmou.

O fundador do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, Marcelo Carvalho, prevê pacificação. “Nas periferias, as meninas e meninos continuam usando as cores. Lá, a seleção ainda é aquela grande camisa que todos querem vestir. O momento que a gente vive afetou demais o uso das cores do Brasil, e uma vitória pode servir para unificar esse país”, afirmou.