Caro leitor,
Quem comparou o documento assinado pelos chefes militares americanos seis dias após o ataque de extremistas de direita ao Capitólio com a nota dos comandantes militares brasileiros publicada pelo Estadão 12 dias depois de Jair Bolsonaro (PL) perder o segundo turno das eleições para Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pôde ter uma ideia do tamanho do desafio para as relações civis-militares no País. Vejamos os momentos em que os oficiais generais dos dois países decidiram falar às instituições e ao povo de seus países.
Era 12 de janeiro de 2021, quando Mark Milley, o chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas dos EUA, divulgou a carta assinada com outros sete oficiais generais. Tinha 20 linhas. Começava assim: “O povo americano tem confiado em suas Forças Armadas para protegê-lo e à sua Constituição por quase 250 anos”. O documento é muito claro ao afirmar que o ataque ao Capitólio era um “assalto direto ao Congresso e à ordem”. “Testemunhamos eventos que são inconsistentes com a obediência às leis, ao direito de liberdade de opinião e de reunião, pois estes não dão a ninguém o direito de usar a violência, a sedição e a insurreição.”
Milley e seus colegas prosseguiram com sua profissão de fé: “Nós defendemos a Constituição. Qualquer ruptura do processo constitucional não é apenas contra nossas tradições, valores e juramento, é contrário à lei”. Os chefes militares mostraram que o único lado que se pode esperar de quem ocupa tais cargos é a defesa da legalidade. A isenção e o apartidarismo não podem servir para fechar os olhos à violência quando esta vem do lado com o qual se simpatiza.
Nem se deve usar o histórico das ações do MST para justificar bloqueios de estradas e agressões a policiais feitos por apoiadores de Bolsonaro. Muito menos a liberdade de opinião justifica a incitação ao crime dos que vão aos quartéis pedir um golpe. Se a censura a quem quer que seja é deplorável em uma democracia, isso não significa que as pessoas não devam ser responsáveis pelo que dizem. E responsabilizadas. Não é papel das Forças Armadas moderar conflitos políticos, chamar de “excessos” aquilo que constitui crime ou dar pitos no Poder Judiciário. Todos esses pontos estavam na nota dos comandantes brasileiros.
Mas o que está por trás dessa irrupção das Forças no cenário conturbado do País após a vitória de Lula? Quem leu apressadamente a nota dos comandantes não percebeu no último parágrafo três palavras que mostram seu parentesco com o pensamento do general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército. Estão ali, na frase: “Assim, temos primado pela Legalidade, Legitimidade e Estabilidade, transmitindo aos nossos subordinados serenidade, confiança na cadeia de comando, coesão e patriotismo”.
Eis aqui todo o programa dos comandantes. Eles se colocaram como continuadores de Villas Bôas. Na crise que levou ao impeachment de Dilma Rousseff (PT), em 2016, o general chamava a estabilidade, a legalidade e a legitimidade de os três pilares da atuação da Força Terrestre. Defendia que o Exército deixasse de ser o Grande Mudo da República, conforme ensinara a Missão Militar Francesa, nos anos 1920. As transformações culturais após o fim da União Soviética, em 1991, teriam imposto radicais modificações no modo de comunicar das instituições. O grande mudo – pensavam os generais – precisava começar a falar.
É que o Exército estava cansado de apanhar calado. Queria enfrentar os agravos da academia, dos jornalistas e dos políticos. Villas Bôas incentivou que os generais sob seu comando ocupassem espaços. Sua meta era que o Exército voltasse a ser ouvido pela sociedade com naturalidade. Ao antropólogo Celso Castro, disse: “Teríamos de romper um patrulhamento que agia toda vez que um militar se pronunciava, rotulando de imediato como quebra de disciplina ou ameaça de golpe”.
O processo é descrito no capítulo Anatomia de um Tuíte, do livro Poder Camuflado, do jornalista Fabio Victor. Villas Bôas teve sucesso e arrastou para as redes sociais uma legião de militares da ativa. O problema é que o comandante destampou a caixa de pandora. Até sargentos começaram a dar palpites em transmissões de deputados federais sobre o valor do soldo. O que se viu foi o esgarçar da disciplina até que o sucessor de Villas Bôas, o general Edson Leal Pujol, pôs ordem na casa, disciplinando o uso das redes sociais, até porque, quem pode um dia aplaudir, pode, no dia seguinte, pensar que tem o direito de vaiar.
Pujol reagia ainda a uma outra mudança: o governo de Jair Bolsonaro identificava-se amplamente com os interesses das Forças Armadas. E também com o discurso de repúdio ao chamado politicamente correto e com os ataques aos partidos políticos que governaram o País na maior parte da Nova República, todos identificados com a esquerda. Se os militares sentiam vontade de falar nas gestões do PT ou de Michel Temer, não achavam mais isso preciso quando se consideraram no poder, com Bolsonaro. Podiam voltar ao silêncio.
E assim foi que Pujol nunca teve conta no Twitter, ao contrário de Villas Bôas. Seu sucessor, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, congelou a conta na rede social depois de assumir o Exército, em março de 2021. O general Marco Antonio Freire Gomes, que o sucedeu na função, também não usa as redes sociais para se manifestar. Nem precisava. Nos últimos três anos há generais falando demais no Palácio, como Augusto Heleno e Luiz Eduardo Ramos.
E isso para não falar do próprio presidente, que inaugurou formas agressivas e descontroladas para desorientar a oposição e se manter como o centro do noticiário. Não foi apenas o cercadinho e a rede de influencers e blogueiros amigos que abasteceram fanáticos, que produziam uma comunicação sem nenhuma institucionalidade. O próprio presidente se deixava envolver pelo gabinete do ódio, o grupo de assessores que rifou o general Rêgo Barros da função de porta-voz, depois de o militar buscar pôr ordem na casa.
O que é notável agora é que os comandantes das Forças tenham recuperado suas vozes no momento em que Bolsonaro silencia a sua. Desde que perdeu a eleição, o presidente fez apenas três publicações para os 15 milhões de seguidores de sua conta no Facebook – um dia antes do segundo turno, ele fizera 22, quase uma a cada hora. Impressiona ainda mais o fato de que a nota não carregava a assinatura do ministro da Defesa, o general Paulo Sérgio Oliveira, que é o representante político das Forças.
Um dos maiores estudiosos dos temas relacionados à Defesa no País, o professor Eurico Lima de Figueiredo, da Universidade Federal Fluminense, resumiu a situação criada pela nota dos comandantes com a seguinte frase: “Ela apaga a figura da liderança do ministro da Defesa.” Foi a primeira vez que isso aconteceu neste governo – nenhuma das fontes consultadas pela coluna soube apontar alguma outra oportunidade em que isso tenha ocorrido desde a criação do Ministério da Defesa, em 1999.
É preciso agora saber se a manifestação dos comandantes significa que o Grande Mudo voltará a falar – acompanhado das duas outras Forças – ou se a nota dos comandantes é apenas mais um símbolo da degradação institucional promovida pelo governo Bolsonaro. De qualquer forma, em um ou em outro caso, a instabilidade provocada por manifestos militares é só mais um dos fatos que o futuro governo de Lula da Silva terá de enfrentar. E não vai adiantar chamar o problema de “herança maldita”.
Para reconstruir a institucionalidade será preciso mais do que votos. É necessário deixar o passado para trás, com todos os seus métodos e fardos, e construir um novo consenso para o País, que torne a democracia um valor universal. Mas também é preciso, como escreveu o professor Manuel Domingos, que o novo governo saiba comandar. “Não basta dizer ao militar que volte ao quartel. Voltar para fazer o quê?” O próprio professor responde: “A missão que lhe compete é se preparar para dissuadir ou abater estrangeiro.” Sem esquecer a defesa da Constituição e a obediência aos Poderes Constitucionais.
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