BRASÍLIA - O Congresso Nacional pode conceder esta semana pela quarta vez anistia a partidos e políticos que descumprem as regras eleitorais — uma história que se repete há quase 30 anos. Além de livrar candidatos e legendas de sanções judiciais, leis aprovadas também asseguraram até mesmo parcelamento das multas impostas pela Justiça eleitoral pelo mau uso do dinheiro público e desrespeito as regras eleitorais.
Nesta terça-feira, 16, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara vai dar o primeiro passo para absolver partidos e políticos de inúmeras irregularidades cometidas por partidos políticos nos últimos anos. A proposta tem apoio da maioria dos partidos. Do PT do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao PL, de Jair Bolsonaro. Na década de 90, quando estava na oposição, os petistas se opunham aos projetos de anistia eleitoral.
“Os parlamentares estão legislando em causa própria. Estão se autoanistiando, o que é uma coisa inconcebível no processo democrático e republicano”, afirmou Luciano Santos, diretor do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE). “Isso não ajuda na construção da democracia. Gera uma sensação de impunidade, causa o descrédito dos partidos, da classe política e uma insatisfação da população.”
Uma análise feita pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) às vésperas das eleições de 2022 identificou milhares de irregularidades no uso do dinheiro público para custear campanhas. No rol de ilicitudes havia ao menos 190 doadores desempregados que repassaram R$ 1,1 milhão às campanhas ou o caso de seis pessoas mortas que enviaram R$ 39 mil para candidaturas.
Até o presente momento, apenas nas eleições de 2022, o TSE está a julgar ou já julgou 53 casos de corrupção eleitoral, 43 candidaturas fictícias, 27 de coação, 26 de corrupção ou fraude e 23 requerimento de regularização da situação de inadimplência de prestação de contas
Irregularidades na prestação de contas anual dos partidos e violações da lei eleitoral por candidatos durante as campanhas são punidas com multa e até impedimento de se candidatar. As sanções são aplicadas pelos Tribunais Regionais Eleitorais e pelo TSE. Projetos aprovados no Congresso podem, no entanto, isentar políticos e legendas das penalidades, artifício que vem sendo adotado no Legislativo desde pelo menos 1994.
Na campanha daquele ano descobriu-se que a gráfica do Senado, bancada com recursos públicos, era usada para imprimir material de campanha. De santinhos a calendários com nome do candidato senador. No ano seguinte, o Congresso aprovou o projeto de lei anistiando todos os parlamentares que participaram do esquema de desvio de dinheiro público.
“Nós fizemos uma lei irresponsável”, lamentou o então senador Pedro Simon (PSDB-RS) ao Estadão, em janeiro de 1995, sobre a anistia.
A decisão abriu passagem para novas anistias. Dois projetos de autoria do então deputado federal Ciro Nogueira (PFL-PI), hoje no PP e que foi ministro da Casa Civil do governo Bolsonaro, anistiava multas eleitorais nos pleitos de 1996 e 1998. A proposta foi anexada a outro projeto de autoria do então senador Gerson Camata (PMDB-ES). Para justificar a medida, Camata disse que a eleição de 1998 fora “atípica” e as regras “não eram claras”. O relator do projeto na CCJ do Senado, Edison Lobão (PFL-MA), falou da “novidade da reeleição”, como um fator pró-anistia.
O então presidente Fernando Henrique Cardoso vetou a medida, mas o Congresso derrubou o veto. O argumento se repete de forma similar em 2023.
Atacado
A PEC que será votada na Câmara nesta terça-feira pretende fazer uma anistia no atacado -- vai isentar partidos e políticos que cometeram crimes eleitorais de 2015 a 2022.
Punições em decorrência de propaganda irregular ou abusiva em campanhas, conduta passível de multa, assim como o descumprimento da cota de gênero e raça nos pleitos serão anulados caso o texto seja incorporado à Constituição.
Um dos trechos ainda permite que partidos possam receber doações de pessoas jurídicas para pagar dívidas contraídas até agosto de 2015. O financiamento empresarial foi considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em julgamento realizado naquele mesmo ano.
A anistia ao descumprimento da cota feminina e de raça é uma repetição de outra lei aprovada pelo Congresso em 2021, que adiava o vigor da legislação de 2020 para 2022. A justificativa é de que as legendas não tiveram tempo para se adequar.
Segundo a legislação aprovada anteriormente, os partidos devem destinar o mínimo de 30% dos recursos do fundo eleitoral, abastecido com dinheiro público, a candidatas mulheres e oferecer quantidade proporcional do montante a candidaturas negras por sigla.
Os partidos tiveram a cifra recorde de R$ 6 bilhões de fundo eleitoral para financiar campanhas pelo País no ano passado. “Não tem como dizer que falta recurso quando recebe esse valor para o financiamento de campanha, além do Fundo Partidário. Não falta dinheiro. Os partidos têm que ter responsabilidade”, disse Luciano Santos, do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral.
Como revelou o Estadão no ano passado, partidos políticos fizeram farra com recursos repassados pelo Fundo Eleitoral. Algumas campanhas chegaram a gastar R$ 80 mil com cabos eleitorais e empresas não relacionadas a atividades ligadas às eleições, que oferecem serviços de paisagismo, transporte escolar e festas.
Multa parcelada
Entre 2013 e 2019, o Congresso aprovou projetos facilitando o pagamento de multas impostas a partidos e candidatos pela Justiça eleitoral. O primeiro, de 2013, permitia pagar a multa em até 60 meses, desde que o valor não ultrapasse 10% da renda do condenado. Dois anos depois, um novo projeto suspendeu o pagamento de multas durante o período de campanha.
Em 2017, foi feita uma atualização para que o parcelamento não ultrapasse os 2% do repasse mensal do Fundo Partidário. Em 2019, Congresso deixou explicitado que o pagamento de multa só seria iniciado se a prestação de contas fosse analisada pela Justiça eleitoral em até cinco anos.
#NãoaPECdaAnistiaAosPartidos
O MCCE alerta a entidades, representantes e sociedade civil para que ajudem a pressionar os deputados contra a aprovação da PEC da Anistia. O grupo pede para que cidadãos usem a #NãoaPECdaAnistiaAosPartidos nas redes sociais para impedir o avanço da proposta.
No Congresso, apenas o Novo e o PSOL se posicionaram abertamente contra a proposta. A PEC, de autoria do deputado Paulo Magalhães (PSD-BA), teve a assinatura do líder do governo, José Guimarães (PT-CE), e da oposição, Carlos Jordy (PL-RJ).
Na primeira tentativa de votação, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann (PR), chegou a reconhecer a relevância da participação de mulheres e negros. Mas defendeu a PEC da Anistia argumentando sobre “problemas” enfrentados com a Justiça Eleitoral.
”É um tema que temos que fazer um debate aberto e franco. Porque vai eleição, volta eleição, esse tema volta à pauta”, afirmou. “Nós temos paridade (de gênero) nos cargos de direção do partido e cota de 20% para etnias indígenas e negros e negras. Isso dá conforto ao PT inclusive para apontar os erros que tem a Justiça Eleitoral ao interferir nos partidos sobre sua linha política e suas decisões políticas.”
Para ela, é preciso se analisar o debate de mérito, que seguirá na comissão após a aprovação da admissibilidade, isto é, da constitucionalidade do PL.
Para entender: anistias autoconcedidas pelos partidos nos últimos 30 anos
Fevereiro de 1995
Congresso anistia especialmente os candidatos que participaram das eleições gerais de 1994, processados ou condenados ou com registro cassado pela prática de ilicitudes eleitorais. A medida veio de membros do Senado para perdoar o colega, Humberto Lucena (PMDB-PB), que imprimiu calendários usando a gráfica do Senado para usar em sua campanha ao governo do Estado e teve o registro de candidatura cassado pelo TSE.
Agosto de 2000
É aprovado projeto de lei de autoria do Senado que anistia multas aplicadas pela Justiça eleitoral a partidos sobre infrações cometidas em 1996 e 1998. O PL foi vetado pelo presidente, Fernando Henrique Cardoso, com elogios do líder do PT na Câmara à época, José Genoíno. “Pela primeira vez, saúdo o veto de um presidente”, disse. O Congresso derrubou o veto.
Abril de 2022
Uma PEC aprovada adiou as multas aos partidos que não cumpriram a cota de gênero e raça, lei que valia já para 2020 para a eleição seguinte, a serem realizadas neste mesmo ano.
2023
Partidos “empurram com a barriga” o cumprimento das cotas de gênero e raça para a próxima eleição, repetindo a anistia que entrou em vigor em 2022 e ampliam as benesses: infrações cometidas nas eleições passadas também ganham o perdão e dívidas contraídas até agosto de 2015 podem ser pagas por doações de empresas. O financiamento empresarial foi declarado inconstitucional pelo STF naquele mesmo ano.
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