É quase surreal perceber que o poder público no Brasil ainda se prende a práticas analógicas, enquanto grande parte do mundo avança com IA – inteligência artificial e demais tecnologias de ponta. Isso ficou patente na última Futurecom, um dos maiores eventos de tecnologia do País, realizado recentemente em São Paulo.
Nos painéis dedicados à inovação nas gestões públicas foi chocante perceber que ainda se debate internet nas escolas. E nem falo do uso precário das redes online no sistema de ensino. Alguns painéis revelaram que em instituições que abarcam mais de 400 mil estudantes não há nem sequer acesso à internet. E nas que possuem, apenas 36% dos professores realmente usam o meio online para levar a tecnologia de fato para dentro da sala de aula.
Se na educação o quadro é tão precário, nas demais áreas o mundo da inovação digital é quase sempre redondamente ignorado, definindo uma gestão pública que poderia fazer muito, mas faz pouco.
Enquanto isso, políticos colocam holofotes sobre inutilidades retóricas, como a regulamentação do uso de emojis em comunicação oficial, ou a criação do “Dia do Orgulho Heterossexual”. Temas que servem para alimentar polarizações e gerar cortes para as redes sociais, sem priorizar o que realmente é preciso, para que estejamos preparados para um futuro onde a IA e o uso de dados se tornam cada vez mais fatores preponderantes para o desenvolvimento.
Em vez de um salto tecnológico, o que temos visto é um desperdício de oportunidades e uma falta de coordenação para implementar soluções básicas. Imagine um sistema de saúde onde os dados dos pacientes são compartilhados entre unidades básicas, clínicas e hospitais, de forma segura e eficiente. Ou um sistema educacional onde o desempenho dos alunos pode ser monitorado e aprimorado com base em dados, alertando aos pais sobre dificuldades e também sobre avanços dos filhos, de forma automatizada. Isso já acontece em várias partes do mundo, mas, no Brasil, esses exemplos parecem ficção, com raras exceções.
Uma dessas exceções esteve presente no painel sobre IA e gestão pública, da Futurecom. Trata-se do Liga – Laboratório de Inovação em Governo Aberto, criado pela prefeitura de Mogi das Cruzes. Um dos primeiros passos realizado pelo prefeito Caio Cunha foi publicar um decreto orientando às secretarias e utilizarem uma mesma linguagem tecnológica para armazenar dados. No caso, foi a linguagem de programação Python, conhecida por sua simplicidade e aplicabilidade. Isso vai permitir que os dados produzidos pela prefeitura possam conversar entre si, facilitando a obtenção de diagnósticos e melhorando a eficiência dos serviços prestados ao cidadão. O coordenador do Liga, Marcelo Oliveira, descreveu, durante a Futurecom, algumas funcionalidades que estão sendo aplicadas em áreas como planejamento estratégico, meio ambiente, saúde, cultura e educação, sempre priorizando o contato mais personalizado com cada cidadão.
Informou ainda que um dos objetivos é criar, no futuro, uma gestão online de relacionamento com o cidadão, baseada nos sistemas CRM – que são usados pelas empresas para se relacionar com os consumidores. Assim, os moradores seriam os clientes da prefeitura e poderiam interagir, criticar, receber serviços e comunicações diretas, via aplicativos, WhatsApp etc.
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O projeto Liga está ainda no início, mas é um dos poucos que estão sendo colocados em prática no Brasil. Em todo o Estado de São Paulo, pouco mais de 20 prefeituras, dos 625 municípios, possuem projetos realmente estruturantes na área digital, ou seja, que entendem a tecnologia como algo transversal.
Há ainda iniciativas importantes sendo feitas em Recife, Curitiba, Florianópolis, entre outras cidades, só que são uma minoria.
É essencial que as administrações comecem a ver os dados como um recurso valioso e estratégico, que pode transformar a forma como serviços públicos são oferecidos. Investir em infraestrutura digital e capacitar as equipes para lidar com dados é o primeiro passo para romper o ciclo de atraso em que o País se encontra.
A digitalização dos serviços públicos não é mais um luxo, mas uma necessidade. Colocar os dados a serviço do cidadão permite decisões rápidas, fundamentadas e eficazes, gerando benefícios que vão muito além de economia e eficiência. Cada investimento em tecnologia é um investimento direto na qualidade de vida da população, garantindo serviços mais ágeis e personalizados para todos.
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