BRASÍLIA - O Ministério da Justiça assinou acordo com uma entidade religiosa para prevenir casos de suicídio de profissionais de segurança pública. Para justificar a contratação, a Pasta informou que houve aumento nos casos de policiais que se mataram entre 2017 e 2018.
O “Ministérios Pão Diário” foi escolhido para atuar em um projeto de “assistência espiritual” da pasta que planeja atender mais de 640 mil servidores da segurança pública. O acordo prevê a distribuição de livros, uso de aplicativo, curso e ciclos de palestras. Pelo aplicativo, direcionado aos cristãos, é possível ler a Bíblia e ver vídeos sobre “vida eterna”, oração, equilíbrio emocional e Setembro Amarelo - campanha organizada desde 2014 para conscientizar sobre o suicídio.
A entidade contratada pelo Ministério da Justiça tem sede em Curitiba e é liderada no Brasil pelo vice-presidente Sênior de Operações Américas e África, Luis Garcia Seoane, e pelo vice-presidente para a região Ibero-América e Caribe, Edilson Freitas da Silva. Nas redes sociais, Seoane costuma compartilhar fotos com autoridades de Segurança Pública do governo Jair Bolsonaro (PL).
No fim do ano passado, Seoane registrou um encontro com o ministro da Justiça, Anderson Torres, e o secretário nacional de Segurança Pública, Renato Paim, durante uma jornada em Natal. O líder do Pão Diário publicou também visitas ao coronel Aginaldo, ex-diretor da Força Nacional e marido da deputada Carla Zambelli (PL-SP). “Grande amigo”, escreveu em uma das fotos.
Além de fotos com autoridades, Seoane compartilha seu interesse por armas. O vice-presidente publica fotos e vídeos com pistolas e fuzis durante treinos de tiro. “Relaxando depois do trabalho”, escreveu em uma das publicações. Em seu aniversário, ganhou um revólver de chocolate e publicou a seus seguidores.
Ao justificar a cooperação, a Justiça disse que o Pão Diário já havia trabalhado com profissionais de segurança pública na compreensão do “propósito de vida”, na “promoção de valores da família”, “prevenção ao suicídio” e “aconselhamento”. Um dos objetivos do acordo, segundo documento da pasta, é “capacitar voluntários” com um curso de assistência espiritual online para que ele percebam “situações adversas do ser humano como, por exemplo, depressão, estresse, ansiedade, potencial suicídio”.
Em um dos vídeos compartilhados pelo Pão Diário com os profissionais da segurança pública, um policial capelão ressalta a importância de reconhecer as próprias fragilidades. Gisleno de Faria recomenda, a quem estiver passando por um momento difícil, procurar ajuda “de um capelão, de um psicólogo, de um amigo, de um comandante, de um familiar, seja de quem for”.
“Saiba que você nunca está sozinho, o próprio Senhor Jesus fez um convite para você: ‘Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei’. O verdadeiro alívio está nele”, afirma.
Verba
O acordo da Justiça com o Pão Diário não prevê transferência de recursos para a entidade. Em abril, o portal Metrópoles publicou a ata de uma reunião na pasta, ocorrida no ano passado, na qual Edilson Freitas sugeriu possível financiamento público para cursos de capelania - serviço de assistência religiosa.
Segundo Freitas, uma das “contrapartidas” que o Ministério poderia disponibilizar seria bolsas em uma pós-graduação de capelania e financiamento a professores dos cursos. Sugeriu ainda uma intermediação junto a Secretaria de Gestão Ensino em Segurança Pública (Segen), ligada à pasta, para montagem do curso.
A cooperação entre o Ministério da Justiça e o Pão Diário faz parte do projeto de Assistência Espiritual, da pasta. O programa foi orçado em R$ 15,9 milhões a serem aplicados até 2024. Documentos obtidos pelo Estadão via Lei de Acesso à Informação indicam que o valor seria usado também para comprar 100 veículos sedans e 300 mil unidades de “literaturas voltadas para a espiritualidade”.
O grupo que trabalhou na criação do projeto incluiu como possíveis obstáculos ao programa a “falta de priorização da espiritualidade”, “resistência” de lideranças religiosas e das “áreas de saúde (psicologia, médica, serviço social)”. Outro risco apontado foi a “baixa disponibilização de recursos via emendas parlamentares para a prestação de um atendimento qualificado”.
O professor Elizeu Borloti, doutor em psicologia do departamento do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento da Universidade Federal do Espírito Santo, alerta que “a religião não funciona quando a pessoa já está comprometida, começa a ter delírios”. “Obviamente, o aconselhamento clerical ou religioso não é adequado para qualquer pessoa e tem que respeitar a crença de cada um”, afirma.
Edilson Freitas da Silva afirmou ao Estadão que o Pão Diário chegou à pasta por meio de um chamamento público em 2020, publicado no Diário Oficial. Segundo ele, a organização não conta com psicólogos.
" A gente já tem esse trabalho em outros países”, contou. “A gente distribui (material) ao Exército da Inglaterra, dos Estados Unidos, de Jamaica e Peru.”
O vice-presidente para a região Ibero-América e Caribe declarou que o trabalho da entidade é de capelania e não de atendimento. De acordo com Silva, o trabalho foca no “aconselhamento”.
“O capelão trabalha próximo à parte de recursos humanos. Se ele vê que a pessoa está passando por um problema, tentativa de suicídio, depressão, ele indica: ‘a tropa tem um psicólogo que pode te atender, procura ajuda’. É mais um conselheiro, um amigo”, disse.
Procurado, o Ministério da Justiça não respondeu.
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