BRASÍLIA – O Supremo Tribunal Federal (STF) proferiu na quinta-feira, 3, a primeira decisão coletiva da Corte - a chamada decisão per curiam, em que o tribunal apresenta uma posição única, sem votos individuais dos ministros. O novo modelo foi adotado no julgamento da “ADPF das Favelas”, que trata da letalidade policial nas operações em comunidades do Rio de Janeiro.
De iniciativa do presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, a decisão foi construída a portas fechadas e buscou mostrar “união e consenso” do tribunal, segundo um interlocutor do ministro. Além disso, reflete objetivos manifestados por Barroso ao assumir a presidência do Tribunal: mais eficiência ao decidir e mais diálogo entre os magistrados. “Este é o primeiro caso em que o Supremo chega ao plenário para anunciar uma decisão tomada ‘per curiam’. Todos os juízes concordaram em um pronunciamento comum”, afirmou Barroso na sessão.

Ele continuou: “É simbolicamente muito importante que possamos ter feito isso neste momento para dizer que o Tribunal tem compromisso com os direitos humanos e com a segurança pública de todas as pessoas, de todos os brasileiros, inclusive com os que moram em comunidades pobres, em favelas”.
Os ministros confirmaram que as Polícias Civil e Militar do Rio têm autonomia para deflagrar operações em comunidades, que foram limitadas desde a pandemia de covid-19, mas o trabalho precisa obedecer uma série de diretrizes, como o uso “proporcional” da força e o respeito aos perímetros de escolas, creches, hospitais e postos de saúde.
A decisão coletiva foi elogiada por juristas ouvidos pelo Estadão/Broadcast, mas também levanta um debate sobre transparência da Corte – já que a opção feita na Constituição é pela ampla publicidade dos julgamentos, inclusive os fundamentos das decisões.
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O fato de a decisão coletiva ter sido tomada na “ADPF das Favelas” não foi por acaso: a Corte estava sob intensa pressão do governo e da prefeitura do Rio de Janeiro, que vinham culpando o Supremo pela piora na situação da segurança pública no Estado. O motivo das críticas foram liminares proferidas pelo relator, Edson Fachin, que restringiram operações policiais no Rio de Janeiro para preservar os direitos dos moradores das comunidades afetadas. O governador Cláudio Castro (PL) e o prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), acompanharam o julgamento no plenário do STF.
Segundo um ministro do Supremo, havia uma preocupação de que o Tribunal saísse como “patinho feio” do julgamento. De acordo com esse magistrado, as autoridades de segurança local estavam culpando o Supremo pela inércia quando, na verdade, o problema de segurança no Rio seria político. A saída construída em conjunto pela Corte agradou ao governador, que disse que a decisão “tirou barreiras importantíssimas”, como a restrição ao uso de helicópteros.
Outro ministro lembra que outros presidentes do Supremo já tentaram alcançar consensos entre os ministros antes do julgamento televisionado e falharam, o que mostra uma vitória de Barroso. Para esse magistrado, apesar da dificuldade de alcançar consensos entre 11 membros, “é importante” que as decisões em casos complexos reflitam um pensamento médio da Corte.
Uma só voz
Esse tipo de decisão coletiva, tomada a portas fechadas e depois anunciada como a voz da Corte, já é o padrão em outros tribunais constitucionais pelo mundo, como nos EUA, Alemanha e Espanha.
“O modelo per curiam é muito elogiado e defendido pela maior parte dos acadêmicos porque tem capacidade de comunicar melhor os fundamentos da decisão. É muito melhor ter uma opinião da Corte que resume o que foi decidido pelo colegiado do que ter colagem de votos onde não é possível identificar de fato quais foram os fundamentos do tribunal”, avalia Ana Laura Barbosa, professora de Direito Constitucional na ESPM.
Apesar de considerar que o esforço merece elogios, Barbosa também faz críticas à forma como a decisão foi tomada. “Não fica claro como foi o procedimento por onde essa deliberação aconteceu, quem participou, como participaram, como esse debate ocorreu. Na maior parte dos tribunais há deliberações sigilosas, mas a gente sabe quando acontece, quando ministros se reúnem”, observa.
O novo modelo foi adotado sem uma mudança no regimento interno da Corte – o que também é um ponto criticado pela professora. “No nosso sistema, as deliberações têm que ser públicas, é uma previsão regimental. Uma modificação dessas deveria passar por uma mudança no regimento interno, para explicar qual é o procedimento”, afirma.
Barbosa ainda pontua que o voto coletivo apresentado pelo Supremo deveria ter aprofundado mais os fundamentos da decisão. “No fim das contas, o documento foca mais nas medidas do que nos fundamentos que levaram àquelas medidas, e esse é um defeito no voto”, avalia.
No caso da decisão sobre a “ADPF das Favelas”, as conversas entre os ministros para chegar ao consenso foram informais. O texto foi sendo construído em conversas entre as sessões, por mensagens e por telefone. Também houve um almoço entre os ministros há alguns meses para discutir o tema, e outro na última quarta-feira, 2, véspera do julgamento.
Para André Rufino, professor e coordenador do Observatório de Direito Constitucional do IDP, a adoção do novo modelo é um avanço. “As vaidades ficam pelo menos escondidas, porque você tem o colegiado atuando como colegiado. O aspecto coletivo do tribunal se sobrepõe ao individualismo”, avalia.
“Ao invés do texto composto de 11 decisões, você tem um consenso em torno de um texto único, escrito por 22 mãos. Esse tipo de decisão é necessária para a Corte falar em uma só voz, e é necessária justamente em casos mais complexos, que necessitam de um posicionamento mais unívoco”, complementa o professor.
Já Elival Ramos, professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP), vê a mudança como “conveniência política” para blindar os ministros de críticas contra uma decisão polêmica. Para ele, não cabe ao Supremo determinar medidas para diminuir a letalidade policial no Rio. “É totalmente fora do que compete ao Supremo fazer. Se for assim, nada impede que amanhã, (o Supremo também decida sobre) a política de salário mínimo, emprego, fome, carência de moradia”, critica. “Talvez por isso tenham decidido em conjunto, porque se trata de um posicionamento político”, observa Ramos.